Argentina: os poderes do presidente no coração das trevas
Em 1852, Juan Bautista Alberdi, em seu livro “Bases e pontos de partida para a organização política da República da Argentina”, sugeriu a figura de um “presidente poderoso” para o país. Essa proposta foi incorporada na Constituição Federal de 1853 e também na reforma de 1994 (sem contar, evidentemente, os regimes militares do século 20).
Há 30 anos, a última alteração na constituição expandiu de forma significativa e desproporcional os poderes do "presidente forte", dando origem a uma nova figura política e constitucional: o monopresidente. Essa figura concentra uma série de poderes públicos com vastas atribuições: administrativas, judiciais e legislativas (incluindo a iniciativa para propostas de leis e de emendas constitucionais), além dos poderes não regulamentados que podem ser exercidos de maneira discricionária. Assim, o monopresidente é um indivíduo imerso e preso à singularidade de sua própria figura. Um sujeito que buscará a unidade em sua atuação, mobilizando toda a sua energia, contra qualquer oposição que apareça em seu caminho.
O Grande Erro Da Reforma Constitucional De 1994
A autorização constitucional que permite ao presidente “legislar”, seja por meio de "decretos de necessidade e urgência" (DNUs), seja através da "legislação delegada" (LD), é um tema controverso. Até 1994, renomados especialistas (como Germán Bidart Campos e Segundo V. Linares Quintana) defendiam que essas duas formas não deveriam existir em nosso Direito Constitucional. O motivo? Isso comprometeria a separação das funções, criando uma concentração desmedida de poder no Executivo. Além disso, isso prejudicaria a racionalidade do processo governamental e o controle sobre o poder, estabelecendo uma alarmante supremacia do poder executivo.
Essa autoridade para legislar por meio de decretos em situações de necessidade e emergência, bem como por meio de leis delegadas, substitui a elaboração colaborativa e dialogada do Direito no Congresso, pela imposição autoritária de um único indivíduo que se autoconvoca, o presidente.
Em 1899, Joseph Conrad lançou “O Coração das Trevas” (Heart of Darkness). A obra relata uma jornada que revela a queda da alma humana em meio ao horror. De maneira direta. Em especial, os atos legislativos feitos sob a justificativa de necessidade e urgência ocasionam essa queda: chocam com a ruptura da separação dos poderes e a estrutura republicana, mergulhando assim nas profundezas das trevas. As esferas de poder do Estado, em particular a presidência, se enredam em uma teia aterradora.
Vamos analisar o artigo 99, inciso 3º, conforme a redação definida pela reforma de 1994, que, aliás, é bastante insatisfatória. O texto estabelece que “sob pena de nulidade absoluta e insuperável, o Poder Executivo não poderá, em nenhuma hipótese, emitir normas com caráter legislativo. Apenas em circunstâncias excepcionais que impeçam a adoção dos procedimentos normais previstos nesta Constituição para a promulgação das leis, e desde que não se refiram a questões relacionadas ao direito penal, tributário, eleitoral ou à estrutura político-partidária, será permitido a edição de decretos por motivos de urgência e necessidade, os quais deverão ser decididos em consenso entre os ministros que os aprovarão, juntamente com o chefe da Casa Civil.”
O chefe de gabinete dos ministros apresentará, de forma pessoal e em até dez dias, a proposta para apreciação da Comissão Bicameral Permanente, cuja formação deve respeitar a proporcionalidade das representações políticas de ambas as Casas. Essa comissão deverá enviar seu relatório, no prazo de dez dias, para o plenário de cada Casa, que o analisará prontamente para uma deliberação expressa. Uma lei especial, aprovada por maioria absoluta dos membros de cada Casa, estabelecerá o procedimento e os limites da intervenção do Congresso.
Desde que começou a contar, o Poder Executivo decidiu elaborar os DNUs conforme sua total liberdade de escolha, adotando uma postura claramente abusiva, oportunista e proibida pela Constituição. Desde a aprovação do artigo 99, inciso 3º, em agosto de 1994 até o presente momento, já foram emitidos mais de 900 DNUs, conforme dados disponíveis no Observatório de Decretos (decretos.com.ar), coordenado por Leandro E. Ferreyra.
Durante o mesmo intervalo, aproximadamente 3.000 leis (tanto formais quanto materiais) foram sancionadas. Essa comparação alarmante destaca a redução das atribuições do espaço democrático, ou seja, do Congresso. A atuação legislativa do presidente, que inicialmente era vedada, se mostra mais relevante — considerando seu conteúdo, impacto e repercussões — do que as funções do próprio Congresso.
Com a autorização prevista no artigo 99, inciso 3º da Constituição, a nação mergulhou em um profundo abismo; e se aprofundou ainda mais com a promulgação da mencionada “lei especial” no final do dispositivo constitucional. Essa legislação é a Lei 26.122, de 2006. O controle político instituído por essa norma é tão inadequado e falho que, em 18 anos, resultou apenas na rejeição de um único DNU; há uma carência de um processo abrangente, eficiente, adequado e rápido.
As significativas falhas da Lei 26.122 precisam ser ajustadas pelo Congresso. Neste momento, há uma grande quantidade de projetos em discussão.
Proponho uma revisão legislativa imediata e cuidadosa, abrangendo os seguintes pontos.
Quanto à "rejeição" do DNU, a alteração legislativa deve definir que a desaprovação de uma das Câmaras é suficiente; ou seja, será necessário que o DNU receba a aprovação das duas Câmaras do Congresso para ser considerado constitucional. Atualmente, a rejeição prevista pela Lei 26.122 é considerada inconstitucional, pois requer a desaprovação tanto dos Deputados quanto dos Senadores.
No que diz respeito ao “prazo”, o tempo na Constituição é um elemento fundamental. Assim, o DNU deve ter sua eficácia jurídica totalmente eliminada no período de 90 dias corridos a partir de sua emissão, a menos que o Congresso realize, de forma oportuna, a convalidação bicameral.
A estipulação de um prazo funcionaria como um mecanismo para limitar o monopólio do presidente e corrigiria a inconstitucionalidade da falta de prazo presente na Lei 26.122. Portanto, proponho uma alteração que segue o mesmo modelo da Constituição Brasileira de 1988, especialmente a Emenda Constitucional nº 32/2001. Da mesma forma, o Decreto Legislativo de Necessidade Urgente (DNU) deveria perder sua validade caso o poder executivo não apresentasse o documento ao Congresso em até dez dias após sua emissão.
Sobre os "efeitos". Um DNU é uma substância prejudicial à formação e ao exercício do poder; assim, sua rejeição, seja por expiração do prazo ou pela desaprovação de uma das Câmaras do Congresso, resultará em nulidade absoluta e insanável: um vazio jurídico que se remete ao dia de sua infeliz origem. Nada que tenha realmente existido, um verdadeiro não-existente no mundo jurídico.
O Congresso precisa realizar mudanças na Lei 26.122 e buscar limitar de maneira cautelosa o poder excessivo do presidente. Os Decretos Nacionais de Urgência (DNUs) apenas incentivam o uso abusivo da autoridade presidencial e prejudicam gravemente a distribuição das funções governamentais, a responsabilidade e a supervisão do poder.
Na alteração da Lei 26.122, é imprescindível revisar aspectos fundamentais relacionados à “rejeição”, ao “prazo” e aos “efeitos” do DNU. Por fim, quando a Constituição for emendada, os DNUs (assim como a LD) deveriam ser permanentemente eliminados das atribuições do presidente, pois contribuem apenas para uma maior concentração de poder autocrático em detrimento da democracia republicana.
[*] Transcrição das palavras do professor Raúl Gustavo Ferreyra durante a Reunião Conjunta das Comissões de "Assuntos Constitucionais" e de "Petições, Poderes e Regulamento" da Câmara dos Deputados do Congresso Nacional da Argentina, realizada em 30 de outubro de 2024, com o objetivo de discutir o regime legal dos "decretos por razões de necessidade e urgência" (DNU). Tradução do espanhol realizada por: Gilmar Mendes (ministro do Supremo Tribunal Federal; doutor em Direito pela Universidade de Münster; doutor honoris causa pela Universidade de Buenos Aires; professor nos cursos de graduação e pós-graduação do IDP, onde coordena o Centro Hans Kelsen de Estudos sobre Jurisdição Constitucional); Paulo Sávio Maia (coordenador-executivo do Centro Hans Kelsen de Estudos sobre Jurisdição Constitucional; doutorando na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; mestre em Direito pela Universidade de Brasília; advogado em Brasília). Os tradutores expressam sua gratidão à Carolina Cyrillo (UFRJ/UBA) pela cuidadosa revisão.