Panorama do enfrentamento penal ao antissemitismo no Brasil

Brasil

A partir do dia 7 de outubro de 2023, o preconceito contra judeus tem sido cada vez mais comum em diversas partes do mundo. De acordo com informações da Confederação Israelita do Brasil (Conib), o mês de outubro de 2023 apresentou uma alta de quase mil por cento nos casos de antissemitismo em território brasileiro em relação ao mesmo período de 2022 [1]. O Brasil também está se tornando um alvo para grupos terroristas, com a recente apreensão de colaboradores do Hezbollah pela Polícia Federal [2].

O antissemitismo é uma forma de discriminação racial que visa os judeus. Segundo a Aliança Internacional para a Memória do Holocausto, trata-se de "uma percepção específica dos judeus, que pode se manifestar como ódio em relação a eles". É comum que esse tipo de discriminação se apresente por meio de linguagem e ações hostis direcionadas a pessoas ou bens judaicos, bem como às instituições religiosas e comunitárias associadas a essa cultura.

Existem várias maneiras pelas quais se pode expressar o antissemitismo, incluindo: (1) acusar os judeus de conspiração para prejudicar a humanidade; (2) responsabilizá-los por tudo de negativo que acontece no mundo; (3) atribuir a eles a culpa pelas doenças humanas, como a peste negra, a gripe suína e, mais recentemente, a Covid-19; (4) afirmar que os judeus têm a intenção de dominar o mundo, controlando a mídia, governos e economias; (5) negar ou minimizar o Holocausto; (6) negar o direito do povo judeu à autodeterminação; (7) usar símbolos e imagens nazistas, entre outras.

Na esfera jurídica criminal do Brasil, o preconceito contra judeus é tipificado como prática racista, especialmente no âmbito da Constituição de 1988.

Com a promulgação da atual Constituição Federal, a luta contra o preconceito racial tornou-se ainda mais importante no Brasil. O documento básico da nação prevê, em seu artigo 1°, item III, a valorização da dignidade humana como um dos princípios fundadores do Estado Democrático de Direito.

Segundo o inciso IV do artigo 3º da Constituição, é incumbência da República Federativa do Brasil fomentar o bem-estar de toda a sociedade, sem qualquer discriminação baseada em origem, raça, gênero, cor, idade ou quaisquer outros tipos de preconceito. Além disso, os incisos II e VIII do artigo 4º explicitam a importância do respeito aos direitos humanos e a rejeição ao racismo e ao terrorismo nas relações exteriores do Estado.

Além disso, o quinto artigo, quadragésimo segundo inciso, que lida com as garantias básicas, estabelece que o ato de racismo é considerado como um crime que não pode ser objeto de fiança e cuja punição não prescreve, e que está sujeito a uma pena de prisão. E, no inciso anterior a este, há uma disposição que determina que toda forma de discriminação que atenta contra os direitos e liberdades fundamentais será punida (destaque nosso).

Três meses depois da promulgação da Constituição Federal, a Lei nº 7.716/89 foi divulgada, a qual determina os delitos decorrentes de preconceito devido a raça ou cor. Já no primeiro artigo, esta lei afirma que serão penalizados qualquer delito originado por discriminação ou preconceito devido à raça, cor, etnia, religião ou nacionalidade.

O artigo 20 do código penal define o crime de racismo, o qual se caracteriza por praticar, instigar ou incentivar a discriminação ou o preconceito com base na raça, cor, etnia, religião ou origem nacional. A punição para tal conduta é de reclusão por um período de 1 a 3 anos e multa.

O primeiro parágrafo do mencionado artigo estipula que é crime fabricar, vender, distribuir ou propagar símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou publicidade que usem a cruz suástica ou gamada, com o objetivo de promover o nazismo. A punição prevista para essa conduta é de 2 a 5 anos de prisão, além de multa.

Até o ano anterior, a legislação penal brasileira estabelecia a criminalização da injúria racial em seu terceiro parágrafo do artigo 140. O delito se caracterizava pelo ato de ofender a dignidade de alguém através do uso de fatores que envolviam raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de portador de deficiência ou idoso. A sanção prevista era de um a três anos de detenção, além de multa.

Contudo, no começo do ano de 2023, foi aprovada a Lei nº 14.532/2023, que equiparou a difamação racial ao racismo. O objetivo da legislação foi consolidar a compreensão do Supremo Tribunal Federal, que foi estabelecida no processo do Habeas Corpus nº 154.248. As conclusões tiradas foram de que o delito de difamação racial cumpre todos os critérios essenciais para identifica-lo como uma das classes de racismo.

Dessa forma, a lei incorporou a ofensa racial no artigo 2-A da Lei de Racismo, declarando que é considerado um delito qualquer comportamento que "ofenda a dignidade ou o decoro de alguém, em função da sua raça, cor, origem étnica ou nacional".

A mudança principal se refere à sanção. Antes dessa norma, o delito de discriminação racial implicava em uma sentença de 1 a 3 anos de prisão e uma multa. Agora, a punição será de 2 a 5 anos. Ademais, se o delito for praticado por duas ou mais indivíduos, a sentença será duplicada.

A inclusão da difamação racial na legislação de discriminação também transforma esse delito em um crime que não pode ser liberado sob fiança nem extinguido pelo tempo e a tramitação da ação, que no passado era dependente do desejo da vítima, agora é independente. Em outras palavras, a vítima não tem mais o direito de escolher se quer prosseguir com o processo, já que ele é responsabilidade do Ministério Público. Logo, a acusação pode ser apresentada sem a aprovação daquele que foi ofendido.

A Lei nº 14.532/2023 também alterou a forma como o parágrafo terceiro do artigo 140 do Código Penal tratava da injúria racial. Antes dessa mudança na legislação, o parágrafo dizia respeito somente à injúria racial. No entanto, agora ele abrange o delito de injúria qualificada, que ocorre quando alguém ofende outra pessoa utilizando-se de elementos relacionados à religião, idade avançada ou deficiência.

Como classificar a calúnia contra um judeu? No que diz respeito à discriminação contra judeus, a questão em aberto é: a que categoria de delito pertence a calúnia praticada contra um judeu, à luz das leis de racismo que tratam de injúria racial, ou trata-se de uma calúnia agravada, conforme o Código Penal?

Na nossa opinião, é evidente que a discriminação direcionada a um judeu individualmente pode ser considerada como injúria racial. Essa conclusão pode ser chegada por dois motivos: primeiramente, a maioria dos atos antissemitas não se referem ao judaísmo como religião, mas sim aos judeus como grupo étnico.

O "Caso Ellwanger" se refere à questão do judaísmo, não apenas enquanto religião, mas como uma cultura com tradições antigas, um povo e um estilo de vida peculiar. As formas de antissemitismo mencionadas acima apontam para ataques diretos à comunidade judaica como um todo, e não apenas à sua crença religiosa. Esse caso se baseia em um precedente do Supremo Tribunal Federal, que foi julgado no ano de 2003 com um Habeas Corpus nº 84.424/RS.

Siegfried Ellwanger Castan tinha um negócio editorial, que lançou vários livros com conteúdo que era claramente contra os judeus. A equipe jurídica de Ellwanger afirmou que os judeus não são uma raça, mas um grupo étnico, então criar e distribuir publicações com conteúdo antissemita não se caracterizaria como violação da Lei de Racismo. Eles também argumentaram que suas publicações, que continham conteúdo antibasisco, estavam protegidas pela liberdade de expressão.

Ao examinar o caso, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu que disseminar ideias antissemitas por meio da publicação de livros é um delito de racismo, previsto no artigo 20 da Lei nº 7.716/89. Tal prática envolve a tentativa de negar acontecimentos históricos relacionados às perseguições sofridas pelos judeus, especialmente o Holocausto, promovendo a discriminação racial e atribuindo-lhes a culpa pelos males do mundo. Esse tipo de conduta, igualmente defendida pela doutrina nazista, justifica a inferiorização e segregação do povo judeu. [5]

A decisão da corte foi em conformidade com o parecer dado pelo ministro Maurício Corrêa, que ilustrou que o racismo abarca a desvalorização de um grupo humano específico, com base em características sociais similares, que configuram uma raça distinta, e demandam um tratamento desigual em relação ao grupo dominante. Esse preconceito se apresenta quando as qualidades humanas são definidas pela raça ou etnia do indivíduo, a justificar a superioridade de alguns em detrimento de outros.

A Suprema Corte utilizou como exemplo os "Protocolos dos Sábios de Sião", que foram descritos pela Ministra Ellen Gracie como uma farsa grosseira criada por antissemitas há mais de um século e que, apesar de ter sido exaustivamente desmentida, ainda é utilizada como um manifesto de ódio antissemita.

Durante a ocasião, o ministro Gilmar Mendes elucidou que:

Após considerar todos os elementos envolvidos neste processo, cheguei à conclusão de que o conceito jurídico de racismo não pode ser baseado na raça, já que este é um conceito pseudocientífico e ultrapassado. É importante ressaltar que as manifestações de racismo ainda são uma realidade, sendo que estas ocorrem quando há discriminação baseada em fatores como cor, religião, etnia, nacionalidade, dentre outros.

Na situação em questão, os ministros consideraram a possibilidade ou não de haver uma contradição entre o direito à liberdade de expressão e a prática de racismo. Concluiu-se que a proteção constitucional da liberdade de manifestação não é total e possui restrições legais, não podendo incluir declarações que envolvem crimes penais:

O principal princípio da liberdade de expressão não permite a incitação ao racismo, pois não se pode usar um direito individual como justificativa para condutas ilegais, assim como ocorre nos casos de crimes contra a honra. Em vez disso, são os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica que devem ter mais importância.

Uma parte notável do respeitável parecer apresentado pelo professor Celso Lafer a respeito do "Caso Ellwanger", em que atuou como amicus curiae, merece destaque.

Siegfried Ellwanger cometeu o crime de praticar racismo, uma conduta que buscamos erradicar em todas as suas formas para construir uma sociedade justa. Foi a mesma linha de pensamento antissemita que conduziu a Alemanha nazista a adotar o genocídio em escala sem precedentes, tornando o Holocausto um mal sem comparação. O Holocausto representa o abandono da humanidade e dos princípios de pluralidade e diversidade, já que sua violência nega os fundamentos da igualdade e da não discriminação que protegem os direitos humanos. O apoio de Siegfried Ellwanger a essa visão espúria é um crime que não pode ser esquecido.

Seguindo a decisão do STF, é considerado um crime racial incitar o ódio contra os judeus e a difamação antissemita deve ser vista como uma forma de racismo, enquadrando-se no delito de injúria racial. Isso é estabelecido no artigo 2-A da Lei 7.716/89.

Publicação com um conteúdo discriminatório contra judeus. No dia 15 de dezembro de 2023, ocorreu um julgamento de grande importância no Tribunal Regional Federal da 5ª Região, em que o Ministério Público Federal conseguiu condenar um homem por crime de racismo previsto no artigo 20 da Lei 7.716/89. A condenação se deu em virtude da publicação nas redes sociais, por parte do réu, de um conteúdo com claro viés antissemita [10].

O réu declarou em uma publicação alvo de acusação que os judeus seriam os culpados pela disseminação de doenças como a Covid-19, influenza H1N1 e peste negra. Ele ainda referiu-se ao Holocausto como um "acontecimento enganoso" utilizado pelos judeus com o objetivo de buscar vingança contra a sociedade.

Depois que o Ministério Público Federal obteve uma condenação em segunda instância, a defesa do réu entrou com recurso de embargos infringentes e de nulidade, argumentando que o acusado estava exercendo seu direito à liberdade de expressão.

a Terceira Seção do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, formada por sete magistrados federais, decidiu por unanimidade rejeitar o recurso. Seguindo as argumentações do relator, o desembargador Rodrigo Tenório, a decisão foi mantida.

O relato da investigação criminal deixa claro que o objetivo do apelante era culpar, por meio de uma publicação, os judeus pelas pragas e doenças que afetaram a humanidade. Ele afirmava que o Holocausto era uma mentira, embora tenha negado veementemente essa alegação durante o interrogatório, limitando-se a questionar o número de vítimas. Ele acreditava que os judeus estavam se apresentando como vítimas para preparar sua vingança contra a sociedade. Sua intenção era refutar verdades indiscutíveis, espalhar mentiras e assim alimentar antigas suspeitas, a fim de praticar, induzir e incitar o preconceito e a discriminação contra o povo judeu.

A respeito da propaganda e do perigo que as publicações podem conter, o relator declarou que

A publicação do autor teve grande visibilidade na internet, como ele mesmo confirmou em seu depoimento. Infelizmente, a postagem tinha o potencial de promover e incentivar atos discriminatórios contra os judeus, inclusive através da violência pública. Quando a postagem foi feita, a pandemia de COVID-19 ainda estava em seu estágio inicial e a população mundial não tinha certeza da origem ou das melhores medidas de precaução contra o contágio, exceto que a doença estava causando a morte de milhares de pessoas em certas partes do mundo. A alegada origem chinesa do coronavírus, por exemplo, levou a vários atos de violência verbal e física contra pessoas de origem asiática em todo o mundo, que foram acusadas de transmitir a doença. Portanto, a possibilidade de que a população judaica sofresse esse tipo de violência em resposta à postagem do autor era uma realidade possível, lembrando que o crime de racismo é formal e pode ser cometido apenas com a conduta proibida, independentemente de qualquer resultado naturalista. É importante enfatizar que, mesmo que a postagem tenha sido vista por poucas pessoas, ainda pode haver um crime de racismo. Isso ocorre porque a conduta proibida envolve tanto a prática quanto a incitação e instigação, e se a última exige um público significativo, a primeira não exige.

O magistrado federal concluiu sua opinião afirmando que:

Este texto carece de profundidade singular. É evidente que possui uma intenção deliberadamente baixa, que é meramente um convite para insultos através da prática de discriminação, ao elencar fatos inverídicos. O litigante tem o direito de ter sua própria opinião, mas não de deturpar os fatos, citando o senador americano Patrick Moynihan. Diante disso, já que a discriminação é tratada pela lei brasileira e pelas convenções internacionais, tanto a formalidade quanto a materialidade estão presentes, e portanto, nego os embargos infringentes e de nulidade.

Os outros magistrados concordaram com o parecer inicial do relator, emitindo opiniões firmes e unânimes condenando as ações do acusado como sendo um ato de racismo.

Assim sendo, segundo as normas e leis em vigor, atitudes antissemitas são tidas como crime de racismo e podem provocar sanções penais para aqueles que cometem tal ofensa.

Cinco é uma referência a um processo julgado pelo Supremo Tribunal Federal. O número do processo é HC 82.424/RS e o relator original foi o Ministro Moreira Alves. O relator para o acórdão foi o Ministro Maurício Corrêa e o julgamento ocorreu no Tribunal Pleno em 17/09/2003. A decisão foi publicada no Diário da Justiça em 19/03/2004.

No julgamento do HC 82.424/RS, o Tribunal Pleno do STF contou com relatoria originária do Ministro Moreira Alves e relatoria para o acórdão do Ministro Maurício Corrêa. A decisão foi proferida em 17/09/2003 e publicada no DJ em 19/03/2004.

Referência: Supremo Tribunal Federal (STF), processo HC 82.424/RS, com relator originário o Ministro Moreira Alves e relator para o acórdão o Ministro Maurício Corrêa, julgado pelo Tribunal Pleno em 17/09/2003 e publicado no Diário de Justiça em 19/03/2004.

[8] O Supremo Tribunal Federal, por meio do Habeas Corpus 82.424/RS, tendo como relator original o Ministro Moreira Alves e como relator para o acórdão o Ministro Maurício Corrêa, julgou em 17/09/2003 no Tribunal Pleno. O resultado da decisão foi publicado no Diário da Justiça em 19/03/2004.

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