O tetra começa aqui: os 30 anos do Brasil x Bolívia que iniciou ...

8 Set 2023

Partida no Arruda teve jogadores de mãos dadas na entrada pela primeira vez, imagem que marcou conquista nos EUA; confira podcast e matéria especial com bastidores do jogo

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Foto globoesporte.com

O dia 19 de julho não é feriado no Recife. Mas, em 1994, bem que poderia ter sido. Era uma terça-feira de sol, e a Polícia Militar pernambucana contou um milhão e meio de pessoas nas ruas, um número superior à população da cidade na época. O motivo para tanta gente reunida era a chegada da seleção brasileira de futebol, que havia sido campeã mundial dois dias antes. Era a primeira aparição dos jogadores e da taça do tetra em terras brasileiras depois da conquista do título.

A escolha do Recife como a primeira escala da viagem de volta dos tetracampeões não foi aleatória. E a explicação para esta decisão estava estampada de forma singela em uma faixa no caminho do desfile dos jogadores em carro aberto:

“Brasil 6x0 Bolívia - O tetra começou aqui”.

O jogo com o placar escrito na faixa, disputado no estádio do Arruda no ano anterior, não foi o que marcou a classificação do Brasil para o Mundial dos Estados Unidos. Sequer foi a maior goleada da história dos confrontos contra a Bolívia. Mas é um jogo emblemático no ciclo de um time que se tornaria campeão do mundo. É um ponto de inflexão. Antes dele, havia uma seleção desacreditada, questionada e vaiada por onde passava. Depois dele, o otimismo e a confiança tomaram conta e carregaram o Brasil rumo à quebra de um jejum de 24 anos sem uma Copa.

Há 30 anos, no Recife, Seleção deu o primeiro passo rumo ao tetra

“Recife é a parte mais importante. Quando a gente é campeão do mundo, todos os jogadores queriam descer no Recife”, relembra o ex-zagueiro Ricardo Rocha.

O técnico Carlos Alberto Parreira, que era o principal alvo das críticas da torcida e da imprensa na época, reverbera a opinião.

- Quando nós chegamos no Recife, o astral mudou tudo. Mudou a história da seleção - conta.

Faixa da torcida em retorno da seleção tetracampeã ao Recife — Foto: Reprodução

Calendário desorganizado

Para que o jogo no Recife no dia 29 de agosto de 1993 fosse tão especial assim, foi necessária uma convergência de fatores: calendário desorganizado, uma derrota inédita e pressão da opinião pública. Além disso, a Bolívia, que nunca frequentou a primeira prateleira do futebol sul-americano, teve o seu papel de antagonista perfeito para este momento da seleção.

Para entender como esses fatores convergiram e criaram a tempestade perfeita, é preciso marcar junho de 1993 como o ponto de partida. Naquele mês, começaria uma sequência de três competições que manteriam a seleção em atividade por 111 dias consecutivos:

US Cup, torneio amistoso nos Estados UnidosCopa América, no EquadorEliminatórias da Copa do Mundo, que teriam jogos concentrados entre julho e setembro

A comissão técnica pretendia tirar proveito desse para montar o time da Copa, mas acabou fazendo três convocações diferentes, uma para cada competição. É que os torneios coincidiam com jogos decisivos de campeonatos estaduais e europeus.

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Foto globoesporte.com

Em 1993, Argentina vence o Brasil nos pênaltis na Copa América

Pressão sobre Parreira

O que era para ser um laboratório virou um fracasso. Na US Cup, o Brasil teve uma vitória e dois empates. Na Copa América, a seleção chegou a perder para o Chile na fase de grupos e acabou eliminada pela Argentina nas quartas de final.

Os resultados ruins fizeram a avaliação do trabalho de Parreira começar a cair na opinião pública, segundo pesquisas feitas pelo Datafolha. Após a Copa América, o percentual de entrevistados que defendiam a saída do treinador tinha passado de 29% para 45% em um mês. No mesmo período, os que defendiam a permanência do técnico tinham caído de 54% para 35%. Ou seja, embora se reconhecesse que o Brasil não disputou as duas competições com o time principal, a mudança no comando da seleção passou a ser uma opinião da maioria.

Cadê Romário?

Quando chegou a hora da convocação para as Eliminatórias, dois fatos ganharam manchetes: a ausência de Romário e de jogadores de times cariocas na lista. E como o único amistoso antes da estreia nas Eliminatórias foi no Rio de Janeiro, a Seleção sentiu de perto o início da turbulência na relação com a torcida.

No dia 14 de julho de 1993, o Brasil enfrentou o Paraguai em São Januário. Apesar da vitória por 2x0, foram 90 minutos de vaias e protestos. O ambiente estava tão hostil que o lateral Branco, ao marcar o gol que abriu o placar, trocou a comemoração por xingamentos aos torcedores mais exaltados (relembre no vídeo abaixo).

Em 1993, Brasil vence amistoso com o Paraguai em São Januário por 2 a 0

Nas Eliminatórias, o Brasil teve pela frente um grupo com Uruguai, Equador, Bolívia e Venezuela. Todos se enfrentaram em turno e returno, com duas vagas na Copa do Mundo para os melhores colocados ao final da disputa. Mas a tabela da Seleção teve uma peculiaridade. No primeiro turno, quatro jogos no exterior. No segundo, quatro jogos no Brasil. Essa composição foi uma escolha de Carlos Alberto Parreira numa reunião na Conmebol.

- Eu que fiz a tabela. Eu fui representar o Brasil na reunião e nós impusemos isso. Imagina se nós tivéssemos que fazer esses jogos fora no fim. Disputar com a Bolívia uma vaga, tem que empatar com a Bolívia. Não vou deixar pra decidir com a Bolívia lá na altitude - iniciou Parreira.

"Então a gente vai lá primeiro, aconteça o que acontecer, depois a gente resolve em casa. Fui eu que fiz essa estratégia. A gente tinha força pra isso, a CBF impor o que a gente queria. Não tinha nada de errado, era só estratégia”, explicou o ex-treinador.

Em 1993, Bolívia vence o Brasil pelas eliminatórias da Copa do Mundo

Estreia com tropeços, sem gols e sem pontos

O problema é que essa estratégia quase colocou em risco a campanha rumo ao Mundial. Na estreia, o Brasil não passou de um 0 a 0 contra o Equador em Guayaquil. E, na segunda rodada, a Seleção perdeu para a Bolívia em La Paz por 2 a 0 (relembre no vídeo acima). Foi a primeira derrota brasileira em 40 anos de disputa das Eliminatórias da Copa. Além disso, a largada tinha sido péssima: dois jogos, nenhuma vitória, nenhum gol marcado. Como a tabela ainda marcava um jogo difícil contra o Uruguai em Montevidéu, a possibilidade de o Brasil ficar fora da Copa era real.

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A goleada sobre a Venezuela por 5 a 1 na terceira rodada não acalmou a torcida, que continuava incomodada com as atuações ruins. Tanto que a Seleção foi muito vaiada num amistoso contra o México em Maceió, disputado numa semana de folga da tabela das Eliminatórias. Foi o momento mais crítico vivido por Parreira, o principal alvo da fúria da opinião pública.

Àquele momento, a pesquisa do Datafolha mostrava que o percentual de entrevistados que queriam a saída do treinador tinha chegado a 70%. A CBF segurou a pressão e bancou a permanência da comissão técnica. O primeiro turno terminou com um empate no jogo contra o Uruguai em Montevidéu, 1x1. Mas a acolhida que a Seleção esperava nos jogos em casa no segundo turno não veio de primeira.

Jornal mostra pressão sobre Parreira nas Eliminatórias de 1993 — Foto: Reprodução

Apoio esperado em casa não veio

A primeira rodada do returno estava marcada para o Morumbi: Brasil x Equador. Antevendo a possibilidade de vaias, a CBF tomou uma decisão inusitada na semana anterior ao jogo. Levou para a Granja Comary os presidentes das principais torcidas organizadas dos clubes paulistanos, além do presidente da Federação Paulista de Futebol. A ideia era propor um pacto de não-agressão, já que o apoio das arquibancadas era importante para a Seleção reagir nas Eliminatórias. Só que a trégua só ficou no discurso mesmo.

“Foi uma coisa impressionante que eu nunca vi igual. Nos três dias que antecederam o jogo, os jornais eram só porrada. Do hotel ao estádio, só vaia. Na chegada ao Morumbi, queriam quebrar os vidros do ônibus”, relembra Parreira.

Na memória de Mauro Silva, volante titular da Seleção na época, estão outros detalhes.

- As vaias começaram antes do jogo. O Taffarel, quando saiu pro aquecimento antes dos jogadores de linha, já foi vaiado. Se o resultado no final do jogo não é o esperado e a torcida te vaia, OK. Mas você ser vaiado desde o início do aquecimento, no seu país, é bem difícil.

Matéria de 1993 mostra receio da seleção de tomar vaias em casa, nas eliminatórias para a Copa — Foto: Reprodução

Mesmo com as vaias, o Brasil venceu o Equador por 2 a 0. Mas, nas entrevistas após o jogo, o lateral Jorginho foi porta-voz do sentimento dos jogadores:

“O que a torcida prometeu pra gente não foi cumprido. Porque o tempo todo a gente jogou sendo vaiado. Lamentável. Esperamos que realmente, sabemos, temos certeza que no Recife essas coisas vão ser diferentes. Infelizmente aqui em São Paulo foi muito ruim”.

De fato, as coisas no Recife foram muito diferentes, desde o momento em que a Seleção pisou na cidade. Milhares de pessoas foram ao aeroporto dos Guararapes receber os jogadores em plena madrugada.

“Você não imagina como isso é importante emocionalmente. Eu fico tocado até hoje quando eu lembro como isso foi importante”, relembra Parreira.

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Seleção tem assédio e carinho da torcida brasileira em hotel, em 1993, antes de jogo contra Bolívia

Carinho no Recife muda tudo

Nos dias seguintes, a avalanche de carinho continuou. A concentração da Seleção, num hotel em Jaboatão dos Guararapes, tinha vigílias de torcedores o dia inteiro. Da praia de Piedade, a multidão acenava. Das janelas, os jogadores respondiam sorridentes.

Na véspera do jogo, a Seleção fez um treino no estádio do Arruda. A princípio, a atividade teria portas fechadas para a imprensa. Mas Ricardo Rocha, pernambucano e formado nas divisões de base do Santa Cruz, estava em casa e resolveu peitar as normas da Fifa.

“A gente tá morto na farofa e o treino vai ser fechado? Tem que abrir, pô. A gente tá sofrendo em todo lugar. Aí abriram os portões”, conta o ex-zagueiro.

Alguns dos milhares de torcedores que entraram no estádio não apenas assistiram ao treino como invadiram o campo para tietar os jogadores.

“Parreira chegou pra mim, me abraçou e disse: ‘impressionante, fera. Bem que você falou. Aqui é diferente’. Aí eu falei uma coisa pra ele: ‘amanhã vai ser mais, que era o dia do jogo"', relembra Ricardo.

Torcida lota Arruda para Brasil x Bolívia em 1993 — Foto: Reprodução

No dia do jogo, 29 de agosto de 1993, a atmosfera no Recife conseguiu ficar ainda mais calorosa. Torcedores marcaram presença ao longo dos 21 quilômetros entre a concentração da Seleção e o estádio. Do lado de dentro, arquibancadas entupidas de gente. O número oficial foi de 75 mil ingressos vendidos, mas há registros de que, juntando pagantes e não pagantes, quase 97 mil pessoas estiveram lá, o segundo maior público da história do Arruda.

Bebeto, atacante titular e um dos principais jogadores da Seleção nos anos 90, se emociona ao comentar.

“Só carinho da torcida. Sempre aquele incentivo. Não tivemos nenhum insulto. Isso deixou a gente confortável e acreditando sempre no nosso potencial”.

A ideia de entrar com as mãos dadas

Fora o abraço da torcida pernambucana, havia outro elemento para temperar aquela tarde de domingo: o sentimento de revanche contra a Bolívia. Depois de derrotar o Brasil no primeiro turno, a seleção boliviana se tornou a grande sensação daquelas Eliminatórias. Chegou ao Recife com 100% de aproveitamento, cinco vitórias em cinco jogos.

A vaga na Copa do Mundo estava bem encaminhada graças a uma boa geração de jogadores (com destaque para o meia-atacante Marco Etcheverry, conhecido como El Diablo) e aos mais de 3.600 metros de altitude em La Paz, que diminuíram o fôlego e dificultaram a vida dos adversários. Inclusive, na semana do jogo no Recife, a seleção boliviana mereceu uma reportagem de capa no New York Times, numa época em que futebol com a bola redonda não era popular nos Estados Unidos.

Seleção boliviana ganhou matéria no New York Times em 1993 por desempenho nas eliminatórias — Foto: Reprodução

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O Brasil x Bolívia do Recife se tornou um marco na história da Seleção no momento em que os jogadores entraram em campo. Eles saíram do túnel de acesso aos vestiários de mãos dadas, numa imagem que surpreendeu e emocionou o país.

A ideia de um gesto para reforçar a união entre time e torcida partiu de Ricardo Rocha. O então zagueiro titular do Brasil lembrou de uma experiência vivida dez anos antes, naquele mesmo estádio do Arruda. Em 1983, ele vestia a camisa do Santa Cruz, que decidia o título pernambucano num triangular contra Sport e Náutico.

- O nosso time era o mais fraco, os rivais estavam mais entrosados. Então, na reta final do campeonato, a gente passou a entrar em campo de mãos dadas e o estádio vinha abaixo. E nós acabamos sendo campeões.

A ideia de repetir o gesto foi apresentada no vestiário e aprovada por jogadores e comissão técnica. As mãos dadas acabaram se tornando uma marca registrada da Seleção por quase cinco anos. O costume durou até a final da Copa de 98, na França.

Seleção entrou de mãos dadas pela primeira vez contra a Bolívia, em 1993 — Foto: Reprodução

Apoio no Arruda e goleada histórica

O apoio tão esperado vindo das arquibancadas e o revanchismo contra a Bolívia temperaram o jogo a ponto de a goleada ser construída ainda no primeiro tempo. Raí marcou aos 12, Muller aos 19, Bebeto aos 23, Branco aos 37 e Ricardo Gomes aos 44.

“Acho que fizemos uma das melhores partidas. Entramos com tanta garra que você pode olhar o jogo aí. Brincamos de jogar bola”, relembra Bebeto.

Com um placar de 5 a 0 ainda no primeiro tempo, a Bolívia sucumbiu. O técnico Xavier Askargorta chegou a pedir para os jogadores abandonarem o campo em um suposto protesto contra a arbitragem. O craque do time, Etcheverry, foi substituído aos 41 por causa de uma lesão muscular. Não havia como fazer frente a uma seleção brasileira tão inspirada.

No segundo tempo, o Brasil tirou o pé e marcou apenas um gol. Bebeto fechou a goleada em 6x0 e, poucos minutos depois, foi substituído por Evair e ovacionado pela torcida pernambucana. Nem a vantagem numérica da Bolívia após a expulsão de Dunga, aos 33 do segundo tempo, ameaçou a atuação impecável da Seleção.

- Eu acho que aquele grupo era muito experiente. Ele tinha noção do seu valor, do seu potencial. Era tudo um jogo emocional. Aquele jogo ali valeu o emocional. E eles estavam super motivados pelo que sofreram lá em cima (em La Paz) e queriam dar uma resposta aqui no Brasil. E deram. Então entraram com uma gana, uma disposição avassaladora. Foi 6, podia ter sido 8 ou 10. Impressionante - destaca Parreira.

Brasil x Bolívia no Arruda, em 1993, pelas eliminatórias da Copa do Mundo — Foto: Arquivo/ge

Dos 11 titulares no jogo do Arruda, 10 estiveram na campanha do tetra no ano seguinte. Por isso, o acolhimento da torcida pernambucana não foi esquecido. Ainda nos Estados Unidos e antes mesmo de o Brasil ser campeão, o elenco decidiu que, em caso de título, a primeira parada na viagem de volta seria no Recife. Numa entrevista em 2022, Parreira citou esta chegada como o momento mais emocionante de toda a jornada do título.

“Foi a primeira vez que eu chorei. Antes da Copa, durante a Copa, campeão do mundo, você tá tão tenso que não deu pra relaxar. Só quando a gente chegou aqui em cima em Recife, eu me lembro até hoje. Não sai da cabeça”.

A conexão entre esses dois momentos (a goleada sobre a Bolívia e a chegada após o título mundial) coloca o Recife numa prateleira especial para quem viveu de dentro a jornada rumo ao título mundial de 1994. O volante Mauro Silva descreve em poucas palavras o sentimento de um grupo inteiro.

“Inesquecível, maravilhoso, mágico. Não tem a menor dúvida. É a lembrança que todo mundo tem ali desse momento”.

Ficha do jogo

Placar: Brasil 6 x 0 BolíviaData: 29/08/1993Competição: Eliminatórias da Copa do Mundo 1994.Local: Estádio do Arruda, RecifePúblico: 75.325 pagantes, 96.990 totaisÁrbitro: Oscar Velásquez (Paraguai). Assistentes: Venancio Zárate Vásquez (Paraguai), Demesio Toledo Romero (Paraguai).Cartões Amarelos: Bebeto, Sandy, Dunga, Peña. Cartão Vermelho: Dunga, aos 78.Gols: Raí, aos 12; Müller (cabeça), aos 19; Bebeto, aos 23; Branco (cabeça), aos 37; Ricardo Gomes (cabeça), aos 44; Bebeto, aos 59.BRASIL: Taffarel, Jorginho, Ricardo Rocha, Ricardo Gomes e Branco; Mauro Silva, Dunga, Raí e Zinho (Palhinha, aos 58); Bebeto (Evair, aos 72) e Müller. Técnico: Carlos Alberto ParreiraBOLÍVIA: Trucco, Rimba, Quinteros, Sandy e Cristaldo; Borja, Melgar, Baldivieso e Etcheverry (Juan Peña, aos 42); Sánchez e Ramallo (Alvaro Peña, aos 72). Técnico: Xavier Azkargorta
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