Ainda estou aqui: um filme que nos mantém firmes e esperançosos
Acessar o conteúdo.
Após quase 30 anos longe do tapete vermelho da premiação mais importante da indústria cinematográfica global, o Brasil está prestes a ter um forte candidato. O filme “Ainda estou aqui”, dirigido por Walter Salles e estrelado por Fernanda Torres e Selton Mello, baseado na obra de Marcelo Rubens Paiva, é um forte concorrente para uma vaga na disputa pelo Oscar de Filme Internacional (antiga categoria de Filme Estrangeiro) em 2026. Entretanto, o feito mais impressionante da obra de Walter Salles, que foi o último brasileiro a concorrer ao prêmio de Melhor Filme Internacional na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood com “Central do Brasil” em 1999, é precisamente a capacidade de contar a história do Brasil para os próprios brasileiros.
O Brasil tem um déficit de narrativas significativas sobre seu passado, especialmente em relação ao período recente, quando o país esteve sob uma violenta ditadura militar. Mesmo lançamentos recentes que exploram essa era, como o excelente “Marighella”, dirigido por Wagner Moura, não se comparam ao que outras nações da América Latina têm produzido sobre suas experiências com a repressão. A Argentina, por exemplo, já nos presenteou com “A história oficial”, que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1986, e em 2023 esteve na disputa pelo prêmio de melhor filme internacional com “Argentina, 1985”. Nesse aspecto, o país vizinho não só nos lembrou da sua indicação ao Oscar, como também nos ensinou como lidar com os responsáveis pelos crimes cometidos durante sua última ditadura (1976-1983). A narrativa apresentada no filme de Santiago Mitre conta com Ricardo Darín no papel do procurador Julio Strassera e Peter Lanzani como seu assistente, Luis Moreno Ocampo, que levaram à justiça e condenaram os generais, responsáveis pela morte de cerca de 30 mil opositores em um período de apenas sete anos.
Em 2022, no Brasil sob a liderança de Bolsonaro e Augusto Aras, acompanhamos com certa inveja o filme "Argentina, 1985". Isso aconteceu após ouvirmos ministros do STF reiterando que deveria-se deixar o passado para trás, apesar da esperança de um dia responsabilizar os autores dos crimes cometidos durante a Ditadura Militar brasileira (1964-1985) e também aqueles relacionados à pandemia. Sem imaginar que o país seria alvo de uma nova tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023, que felizmente falhou, ainda aguardamos, mesmo com a volta de Lula à presidência, a criação de uma nova Comissão Nacional da Verdade (CNV), que esperamos também tenha a missão de promover a justiça, algo que a CNV que atuou entre 2012 e 2014 não conseguiu. Além disso, ansiamos por mais filmes e livros que enfrentem abertamente nosso passado recente, capazes de esclarecer um período tão difícil de nossa história, uma tarefa que "Ainda estou aqui", com sua trajetória até agora breve nos cinemas, tem conseguido realizar.
Na penúltima ocasião em que o Brasil disputou uma estatueta na categoria de filme internacional, foi com uma obra que retratava os conturbados anos da Ditadura. “O que é isso, companheiro?”, dirigido por Bruno Barreto, foi exibido no tapete vermelho em 1998. Já “Central do Brasil”, do aclamado Walter Salles, narra a trajetória de Dora (Fernanda Montenegro), uma escrevedora de cartas que auxilia uma criança, Josué (Vinícius Oliveira), a procurar seu pai no sertão nordestino. Este filme competiu na mesma categoria em 1999 e, surpreendentemente, Fernanda Montenegro, que também aparece no novo projeto de Walter Salles, recebeu uma indicação ao prêmio de melhor atriz.
As coincidências envolvendo Walter Salles, Fernanda Montenegro e Fernanda Torres (que também participa de “O que é isso, companheiro?”) encerram-se aqui. Em 1998, o filme de Bruno Barreto, adaptado da obra homônima de Fernando Gabeira, apesar de seus muitos méritos, recebeu críticas, especialmente por ferir a memória histórica. Naquela época, ao reproduzir nas telonas o sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick (Alan Arkin) por um grupo da Ação Libertadora Nacional (ALN) e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), Bruno Barreto e o roteirista Leopoldo Serran conferiam uma complexidade ao personagem do torturador Henrique (Marco Ricca). Em contrapartida, os guerrilheiros eram apresentados como figuras superficiais, simples e dominadas por um ódio intenso, com exceção de Paulo/Fernando Gabeira, interpretado por Pedro Cardoso.
Com essa alternativa que buscava um meio-termo com a Ditadura e, de certa maneira, justificava a tortura, o personagem Jonas, que na realidade é Virgílio Gomes da Silva, interpretado por Matheus Nachtergaele, foi apresentado como um vilão, gerando a indignação de pessoas que conviveram com o militante da ALN. Essas pessoas o descreviam como alguém gentil, idealista, leal e um dedicado defensor da causa. Capturado logo após o desfecho do sequestro de Elbrick, que resultou na libertação de 15 prisioneiros políticos, Jonas sofreu torturas brutais, vindo a falecer nas mãos dos agentes da Ditadura, que posteriormente o enterraram como indigente no cemitério da Vila Formosa, em São Paulo.
Diante desse ultraje perpetrado contra a memória de uma vítima da Ditadura, o filme “O que é isso, companheiro?” inspirou a elaboração do livro “Versões e ficções: o sequestro da história”. Esta obra coletiva tem o propósito de proteger a memória de Jonas, proporcionando uma narrativa dos eventos “que não se limite apenas àquela elaborada pelos caçadores” e que vá “certamente muito além do que se almeja como ‘isento’ e ‘desideologizado’” (1997, p. 10).
Se "O que é isso, companheiro?" gerou controvérsias, apesar de sua excelência estética que o rendeu um Oscar, "Ainda estou aqui" tem proporcionado alegria nas plateias de todo o Brasil. Além disso, tem sido celebrado por pesquisadores da Ditadura e por pessoas que viveram naquela época, que valorizam a sinceridade e a sensibilidade com que a narrativa de Rubens Paiva e sua família foi retratada.
“O filme ‘Ainda estou aqui’ narra a trajetória da família do deputado Rubens Paiva (Selton Melo), que foi capturado por agentes do Centro de Informações da Aeronáutica (CISA) em 20 de janeiro de 1971 e, posteriormente, declarado como “desaparecido” pelo regime militar. Rubens Paiva, eleito deputado pelo PTB de São Paulo em 1962, teve seu mandato cassado após o Golpe de 1964, o que o forçou a deixar o Brasil devido à repressão que se instaurou. Depois de retornar ao país em 1965, Rubens estabeleceu-se no Rio de Janeiro com sua esposa Eunice (Fernanda Torres) e seus cinco filhos, incluindo Marcelo Rubens Paiva (Guilherme Silveira), autor da obra que inspirou o filme dirigido por Walter Salles.”
Na obra de Walter Salles, a residência da família Paiva é um ambiente vibrante e iluminado, sempre com portas e janelas abertas, repleto de amigos que entram e saem daquela encantadora construção à beira-mar no Leblon. Na primeira metade do filme, o público é convidado a vivenciar a intimidade dessa família que aparenta levar uma vida feliz e normal. No entanto, algo inquietante se destaca no cenário. Helicópteros sobrevoam a costa, tropas cruzam a avenida em caminhões abarrotados de soldados, e barreiras militares agem com violência contra jovens brancos de classe média, enquanto nas televisões são veiculadas notícias políticas sobre o sequestro de diplomatas estrangeiros. Esses acontecimentos despertam a curiosidade dos Paiva, especialmente de Eunice, que parece ter uma visão mais profunda do que a dos demais membros da família.
A vida da família Paiva segue tranquila e repleta de carinho, típica de um lar educado, politicamente engajado, pertencente à classe média alta e com uma prole numerosa, até que um evento inesperado altera completamente essa realidade. A chegada dos agentes do CISA, que levam Rubens para um "interrogatório padrão", também impacta Eunice e Eliane, a filha do casal, que na época tem apenas 15 anos. A partir desse momento, a rotina se transforma em um verdadeiro pesadelo.
Levantadas no quartel da 3ª Zona Aérea no dia 21 de janeiro, o mesmo lugar para onde Rubens havia sido levado um dia antes, durante o feriado de São Sebastião na cidade do Rio de Janeiro, Eliane e Eunice foram liberadas alguns dias depois (Eliane no dia 23 e Eunice em 2 de fevereiro). Contudo, Rubens nunca mais retornou para sua casa. Entre as diversas narrativas da Ditadura que foram disseminadas pela imprensa, a qual por muito tempo colaborou com a tarefa suja de espalhar falsidades, estavam as informações de que Rubens Paiva havia escapado, que teria sido capturado por terroristas que planejavam libertá-lo e que teria sido morto durante a tentativa de fuga; todas essas versões foram mais tarde desmentidas por meio da investigação realizada por historiadores, outros estudiosos e membros da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que investigou os crimes da Ditadura entre 2012 e 2014.
De acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade, divulgado em 2014, Rubens foi primeiramente conduzido ao quartel da 3ª Zona Aérea, sob o comando do tenente-brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, onde as torturas tiveram início. Em seguida, ele foi transferido para a sede do DOI-CODI, situada na rua Barão de Mesquita, na Tijuca, que era um notório centro de tortura na cidade.
Na queixa apresentada pela família de Rubens Paiva ao Ministério Público Federal do Rio de Janeiro (MPF-RJ) em 2014, conforme relatado na obra de Marcelo Rubens Paiva, está registrado o seguinte:
A calamidade que atingiu a família de Rubens marca uma mudança crucial na narrativa, revelando uma faceta diferente de Eunice Paiva. A dona de casa habilidosa, a esposa devotada e a mãe carinhosa, reconhecida por seu famoso suflê, acabou mostrando-se uma mulher resiliente, possuidora de diversos recursos emocionais e uma inteligência excepcional, que utilizou para cuidar de seus filhos e enfrentar as adversidades impostas pela Ditadura Militar.
Inicialmente, pela sua habilidade em suportar a tortura psicológica durante os 11 dias que passou presa; em seguida, pela busca de informações sobre seu marido e pela proteção de sua família; e, por último, mas não menos relevante, por redefinir sua trajetória de vida. Eunice Paiva se destaca como uma verdadeira protagonista na narrativa apresentada por Marcelo Rubens Paiva e Walter Salles. Formada em Letras, mas inicialmente dedicada ao lar e à família, Eunice decide estudar Direito após se mudar para São Paulo com os filhos. Com 48 anos, ela se torna bacharel em Direito e começa a advogar em favor dos direitos dos povos indígenas, colaborando com a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha e se estabelecendo como uma das principais especialistas brasileiras na defesa dos direitos humanos e dos povos originários. Esses temas são abordados no filme e são ainda mais enriquecidos pela leitura do livro que o inspirou.
“Ainda estou aqui” pode não figurar na lista final dos concorrentes ao Oscar, e Fernanda Torres, possivelmente a melhor atriz brasileira de sua geração, pode não receber a indicação para o prêmio mais prestigioso do cinema mundial como se especula. No entanto, se não conquistar mais nada além dos calorosos aplausos recebidos em setembro durante o Festival de Veneza (onde Fernanda Torres e “Ainda estou aqui” foram aplaudidos por dez longos minutos e Murilo Hauser e Heitor Lorega ganharam o prêmio de melhor roteiro), “Ainda estou aqui” já terá deixado sua marca na história. Como Fernanda Torres tem ressaltado em várias entrevistas, o Oscar não deve ser visto como o principal objetivo da obra. Dado que a premiação segue critérios diversos, o que não garante que o melhor de cada categoria seja reconhecido, a expectativa dos amantes do cinema não pode determinar o valor de “Ainda estou aqui” neste momento difícil que o país enfrenta.
Filmado em 35 mm, a obra de Walter Salles apresenta diversos outros atributos, como uma fotografia deslumbrante, um figurino que cativa os olhos e trilhas sonoras que refletem cada década retratada no filme, especialmente os anos 1970. O elenco merece uma menção especial, pois além das atuações impressionantes e convincentes dos jovens intérpretes que representam os filhos de Eunice e Rubens na primeira parte da obra, "Ainda estou aqui" conta também com atores e atrizes premiados que atuam como personagens secundários, mas que enriquecem a narrativa além do grupo principal. Destaca-se, em particular, Fernanda Montenegro, que interpreta a versão idosa de Eunice Paiva na cena final, ambientada em 2014.
“Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles, é um longa-metragem produzido por brasileiros, voltado para o público brasileiro. Trata-se de uma tocante homenagem à família Paiva, que perdeu sua matriarca em 13 de dezembro de 2018, aos 86 anos, exatamente quando se completavam 50 anos do Ato Institucional nº 5. O filme também representa um poderoso sinal da batalha de uma nação que necessita redescobrir sua memória.
Eunice Paiva, em uma daquelas ironias da vida, enfrentou os últimos 14 anos de sua trajetória marcada pela doença de Alzheimer. Considerando tudo o que ela simbolizou para a nação, o que "Ainda estou aqui", tanto no filme quanto no livro, nos ensina, é possível afirmar que seu legado motiva o Brasil a manter a esperança e a continuar a busca por memória, verdade e justiça.