Prática de futebol é altamente popular entre os guarani mbya, que possuem liga com 43 times, uniformes estilizados com elementos de sua cultura e torn

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La Liga

Marcos do Amaral Jorge.

Nos últimos meses, as notícias sobre futebol no Brasil têm incluído temas que não estão diretamente relacionados com a habilidade de chutar a bola em direção ao gol, como denúncias de resultados manipulados, a influência do poder financeiro dos sites de apostas nos clubes e uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) criada para investigar esse cenário obscuro. No entanto, enquanto o esporte profissional se torna cada vez mais envolvido em controvérsias, os aficionados pelo futebol amador continuam a procurar os campos do país em busca de diversão, manutenção da forma física e reencontro com amigos. Além disso, uma pesquisa em andamento no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Unesp, no campus de Presidente Prudente, está analisando a prática do futebol entre os indígenas das aldeias Mbya Guarani, que têm suas próprias ligas e realizam torneios e campeonatos de forma regular em diferentes estados.

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Foto Jornal da Unesp

A pesquisa é conduzida pelo geógrafo Gabriel Pereira, que durante seu mestrado investigou a liga organizada em Santa Catarina. Atualmente, no doutorado, ele está ampliando seu foco para outros estados. Em sua análise, Pereira busca compreender as ligações entre a prática esportiva e o modo de vida tradicional da etnia. Mais especificamente, ele identifica uma conexão entre as competições de futebol e um conceito muito importante na cultura guarani, chamado guatá porã. Traduzido livremente, guatá porã significa “caminhada bonita”, mas pode ser interpretado como deslocamento ou mobilidade. Na cultura Mbya Guarani, porém, esse deslocamento não se limita ao movimento individual; também está intimamente ligado às visitas e à criação de laços e trocas com outras aldeias, uma prática altamente valorizada por essa etnia.

Pereira esclarece que a maneira como os Mbya Guarani se estruturam e exercem sua autonomia cultural sobre o território que habitam – ou seja, sua territorialidade – ocorre de maneira bastante dinâmica. Isso ocorre porque esse território, muitas vezes, é determinado pelas interações estabelecidas entre as diferentes aldeias, e não estritamente por limites geográficos. “Os Mbya Guarani sempre foram compostos por diversas aldeias que se conectam através dessas relações”, afirma Pereira. “É bastante incomum encontrar um guarani que não tenha mudado de aldeia pelo menos uma vez. Alguns inclusive fazem isso várias vezes ao longo da vida, por diversos motivos”, acrescenta.

O guatá porã, conforme explica o pesquisador, é citado por vários autores e estudiosos da etnia como um componente fundamental no nhandereko, que é o estilo de vida guarani. Ele está presente, por exemplo, no Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) da Terra Indígena Morro dos Cavalos, criado em 2021. Essa terra indígena foi utilizada como base para sua pesquisa. “O documento ressalta que é bastante comum o deslocamento diário de indivíduos entre as aldeias, e que os mais velhos frequentemente visitam diversas comunidades ao longo de suas vidas. Isso seria uma das razões para que sejam vistos como mais sábios”, afirma.

Durante a realização de sua pesquisa de mestrado, Pereira mergulhou nos aspectos da cultura regional e observou de perto a dinâmica social criada pelas atividades da Liga de Futebol Mbya Guarani de Santa Catarina. A investigação incluiu a realização de entrevistas com os indígenas que organizam e participam do torneio, além de ter acompanhado algumas dessas partidas pessoalmente.

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Foto Jornal da Unesp

O interesse do pesquisador pelo assunto surgiu durante suas visitas à Terra Indígena Morro dos Cavalos, situada no município de Palhoça, em Santa Catarina. Em sua pesquisa de campo para um projeto da Fapesp, que tinha como objetivo identificar e delinear áreas de conflito na região, Pereira ficou impressionado com o entusiasmo gerado pela prática do futebol na rotina de crianças e adultos da comunidade, incluindo tanto homens quanto mulheres. Os jogadores, por sua vez, usavam uniformes adornados com textos, imagens e grafismos que faziam referência à cultura guarani. Durante conversas com os integrantes da aldeia, ele descobriu que na TI do Morro dos Cavalos existiam três times masculinos e dois femininos, que aos finais de semana competiam com outras aldeias.

A Liga de Futebol Mbya Guarani de Santa Catarina teve sua primeira edição em 2018, contando com a participação de dez times masculinos e cinco femininos, provenientes de nove aldeias diferentes. As partidas ocorrem em um campo destinado ao futebol de sete jogadores, semelhante ao que em São Paulo é conhecido como futebol society. A opção por sete atletas, em vez dos onze típicos do futebol convencional, foi uma maneira de incluir aldeias menores que poderiam ter dificuldades em reunir um time completo. De maneira geral, cada equipe representa sua aldeia, embora algumas aldeias maiores tenham mais de um time na competição. Apesar de algumas interrupções devido às preocupações sanitárias geradas pela pandemia de Covid-19, a Liga tem se fortalecido ao longo dos anos.

Atualmente, a Liga está em sua quinta edição e reúne 25 equipes masculinas, 14 femininas e quatro infantis mistas, essa última modalidade sendo uma estreia. Das 43 equipes participantes, dez são de fora de Santa Catarina e foram convidadas a integrar o torneio: oito do Rio Grande do Sul e duas de aldeias guarani localizadas no estado de São Paulo, uma vinda da Terra Indígena Jaraguá, na capital, e outra do município de Mongaguá, no litoral sul paulista.

As competições ocorrem quase todos os meses, com cada edição sendo realizada em uma vila distinta de Santa Catarina. Ao término da Liga, as equipes vencedoras nas categorias masculina e feminina recebem troféus, medalhas e premiações em dinheiro, além de serem escolhidos os melhores atletas da disputa.

“Atualmente, devido à divisão dos territórios e à existência de propriedades privadas cercadas ao redor das terras indígenas, os povos nativos não conseguem se movimentar e se deslocar como faziam antigamente”, afirma Pereira. “Por isso, a relevância da Liga é fundamental, pois ela auxilia na organização e na promoção desses encontros de uma maneira mais abrangente.”

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Foto Jornal da Unesp

O pesquisador ressalta que existem diversas datas comemorativas que possibilitam encontros e celebrações. Entre essas ocasiões estão a Marcha das Mulheres e o acampamento Terra Livre, uma mobilização indígena realizada todos os anos em Brasília. No entanto, esses encontros têm uma natureza interétnica, abrangendo mais do que apenas os guarani. Segundo Pereira, "também há reuniões menores entre os Mbya Guarani que são voltadas para cantos ou têm um enfoque religioso. Contudo, nenhum deles ocorre com a mesma regularidade que o torneio de futebol."

Desde a sua edição inaugural, os organizadores idealizaram o torneio como um evento móvel. Essa abordagem é viável graças ao formato de liga, no qual as partidas acontecem em localidades distintas a cada rodada.

O torneio atua como uma malha de conexão cultural e territorial. “Os Mbya Guarani reconhecem seu espaço por meio do conhecimento e das visitas, e o futebol, ao menos, ajuda a consolidar essa rede que ultrapassa os aspectos religiosos e culturais mais convencionais.”

Os eventos organizados pela liga de futebol vão além do campo dos jogadores atuantes. Existe um contexto vibrante ao redor do campo, que se ativa durante as partidas. Pereira utilizou a abordagem de observação participante na coleta de informações, que envolve um envolvimento profundo com o tema em questão para entender suas práticas e costumes. Durante sua pesquisa, ele assistiu a vários jogos da liga e teve a oportunidade de notar reuniões de familiares e amigos que aproveitam as partidas para se deslocar junto com as equipes e se reencontrar com conhecidos que residem em outras comunidades.

A chegada dos visitantes à aldeia que sedia a rodada impulsiona uma grande mobilização nas proximidades do campo, que acolhe um público variado e diversas atividades complementares. “Quando os organizadores definem uma rodada, habitantes de todas as aldeias adjacentes se deslocam até o local. Esse movimento promove encontros entre os mais velhos e as crianças, assim como trocas culturais e de sementes. O que acontece é um grande evento, ligado à cultura e à territorialidade, resultado desse deslocamento e do futebol”, afirma Pereira.

Embora a criação da Liga tenha sido impulsionada por uma motivação comunitária desde o início, também refletiu o desejo de estabelecer um torneio semelhante às grandes competições internacionais. Nesse contexto, a estrutura em formato de liga, o cronograma e a cerimônia de sorteio das chaves foram influenciados pela Liga dos Campeões, um campeonato continental de clubes realizado na Europa e reconhecido como um dos mais prestigiados do planeta. Inclusive, o troféu é uma cópia da famosa "orelhuda", nome dado ao prêmio concedido ao clube campeão europeu.

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Foto Jornal da Unesp

Ao analisar os uniformes, nomes e emblemas das equipes envolvidas, nota-se que as referências são predominantemente locais, incorporando uma variedade de gráficos e elementos da cultura guarani. Por exemplo, alguns emblemas apresentam representações de cocares, que simbolizam o orgulho indígena. Outro elemento frequentemente presente é a figura do beija-flor, que está ligada à cosmologia guarani. De acordo com essa crença, a ave, com seu vibrante movimento de asas, representa a união das águas com o fogo, resultando assim na formação da terra. Além disso, algumas equipes homenageiam líderes da etnia, como Karai Tatendy, um educador, pesquisador e autor indígena que faleceu em 2015 e teve um papel vital na luta pela educação dos Mbya Guarani.

Durante suas investigações, Pereira se deparou com registros históricos que indicam que, antes da chegada dos europeus às Américas, os povos guaranis já se dedicavam a uma prática esportiva em que uma bola era chutada, sem a utilização das mãos, chamada Manga Ñembosarái. Essa atividade, no entanto, seguia uma dinâmica particular. Não havia um cronômetro estabelecido para a prática, nem um sistema de pontuação. Pode-se dizer que se assemelhava ao que atualmente chamamos de "bobinho", em que a bola é passivamente trocada entre os jogadores até que se cansem. O artigo que Pereira descobriu foi fundamentado em uma coleção de relatos de missões jesuíticas a partir do século 18 e escrito por Bartolomeu Meliá, um jesuíta e antropólogo espanhol que residiu no Paraguai e no Brasil, sendo amplamente reconhecido como um grande conhecedor da cultura guarani.

Embora seja complicado afirmar que um jogo de bola que se joga exclusivamente com os pés tenha originado o futebol que conhecemos atualmente, Pereira defende que, na cultura guarani, sempre houve uma forma de “futebol”. Ele sugere que essa atividade pode ter evoluído ao longo do tempo, incorporando novas regras e se aproximando do esporte criado pelos ingleses no início do século 19. “Os guaranis sempre praticaram futebol, mas, com o passar dos anos, essa prática sofreu transformações. Eles começaram a utilizar bolas fabricadas em vez de látex, incorporaram os gols, as traves e a contagem de pontos. A atividade foi se adaptando, mas a brincadeira que serve como preparação física e mental sempre esteve presente”, explica.

No dia 9 de novembro, na comunidade de Mymba Roka, localizada em Biguaçu, os guarani terão mais uma chance de se divertir, fazer atividades físicas e participar de seu tradicional guatá porã. Nesse dia, acontecem as semifinais do campeonato masculino e feminino da Liga Mbya Guarani de Santa Catarina.

Na imagem acima, mulheres indígenas Mbya Guarani participam de um campeonato de futebol feminino (Crédito: Facebook Liga Mbya Guarani de SC).

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