Em que dia Jesus nasceu segundo os evangelhos e como se convencionou a data de 25 de dezembro? | Mundo
É possível que, se o monge medieval responsável por estabelecer a data de seu nascimento não tivesse cometido um erro de cálculo, estaríamos vivendo em 2026 atualmente.
Não é possível determinar com precisão a data do nascimento de Jesus de Nazaré.
A única referência disponível para os historiadores que desejam reconstruir sua vida são os evangelhos, que foram redigidos várias décadas após sua morte por indivíduos que nunca o encontraram pessoalmente e que eram defensores da crença em Jesus como o messias.
Sua narrativa é transmitida por intermediários, como a segunda, terceira ou quinta mão, contada por cristãos de primeira geração que, de acordo com estudiosos, estavam mais preocupados com a morte e ressurreição de Jesus do que com o seu nascimento.
Os escritos dos evangelistas, por outro lado, oferecem indícios para localizar Jesus — cuja existência como figura histórica é amplamente aceita pelos estudiosos — em um período determinado da história.
As principais referências, segundo o historiador espanhol Javier Alonso em entrevista à BBC News Mundo, o setor de notícias em espanhol da BBC, são os Evangelhos de Mateus e Lucas, que foram redigidos aproximadamente entre os anos 80 e 90 d.C.
Embora os escritos mais antigos do Novo Testamento, como o Evangelho de Marcos e as sete epístolas do Apóstolo Paulo de Tarso que são consideradas genuínas, não mencionem sua juventude, os Evangelhos de Mateus e Lucas trazem o que é chamado de "relatos da infância" de Jesus.
Os evangelhos foram redigidos várias décadas após a morte de Jesus — Foto: GETTY IMAGES
"O desafio é que, sob a perspectiva do tempo, eles não se encaixam", afirma Alonso, que é filólogo especializado em textos bíblicos e semíticos.
Marcos declara que Jesus veio ao mundo sob o governo de Herodes, o Grande, pouco antes que ele falecesse.
"Agora que temos conhecimento de que Herodes faleceu em 4 a.C., de acordo com o Evangelho de Mateus, é provável que Jesus tenha nascido entre 4 e 7 a.C."
É provável que tenham notado a inconsistência de que Jesus veio ao mundo muitos anos antes da era de Cristo, ou seja, dele próprio. Mas vamos com calma, chegaremos a esse ponto.
No relato de Lucas, não há menção a Herodes, mas sim uma conexão entre o nascimento de Jesus e o censo realizado por Quirino. De acordo com sua narrativa, Maria e José, os progenitores de Jesus, precisaram se deslocar da Galileia até Belém para efetuar seu registro no censo.
O evangelista garante que esse é o relato de Públio Sulpício Quirino, o governador romano da Síria, que na época abrangia a Judeia. Apesar de Maria estar bastante grávida, o casal precisou ir até lá, pois era o local de nascimento de José.
O censo realmente ocorreu, conforme relatado pelo historiador Flávio Josefo, o que nos possibilita estabelecer uma data: o ano 6 da era cristã.
"Em outras palavras, existe uma discrepância de ao menos dez anos entre Mateus e Lucas", afirma Alonso.
Devemos incluir mais uma consideração: a hipótese de que os capítulos 1 e 2 de Mateus, assim como os capítulos 1 e 2 de Lucas, tenham sido adicionados aos evangelhos quando já estavam em circulação, comenta à BBC News Mundo Antonio Piñero, professor emérito de Filologia Grega na Universidade Complutense de Madrid, na Espanha, cuja pesquisa se especializou na língua e na literatura do cristianismo inicial.
"É evidente que esses elementos foram inseridos, uma vez que os personagens dos evangelhos de Mateus 3 e Lucas 3 não têm conhecimento dos eventos que ocorreram nos capítulos anteriores, existindo até informações conflitantes", defende Piñero, que afirma que os historiadores datam a escrita desses relatos no início do século II.
Assim, é provável que, ao se redigir sobre o nascimento e a infância de Jesus, mais de 60 anos já tivessem se passado desde o seu falecimento.
Até aquele momento, segundo Piñero, calculava-se que existiam aproximadamente 3 mil cristãos em todo o mundo, distribuídos em diversas comunidades.
Então, qual versão está mais alinhada com os fatos, a de Mateus ou a de Lucas?
Para chegar a essa conclusão, os historiadores analisaram outros marcos históricos presentes nos Evangelhos, com destaque para uma figura fundamental na trajetória de Jesus: Pôncio Pilatos.
É conhecido que Jesus foi crucificado durante a administração do governador Pôncio Pilatos, que se estendeu de 26 a 36 d.C., e que iniciou suas pregações no 15º ano do reinado do imperador Tibério, esclarece Alonso.
"Se analisarmos o Evangelho de Mateus, a informação de que Jesus veio ao mundo em 4 a.C. se revela coerente. Ele faleceria no ano 30, possivelmente aos 34 anos", defende o historiador.
Entretanto, se considerarmos o que Lucas diz, as contas não batem.
Os Evangelhos confirmam que Jesus nasceu antes da morte de Herodes, o Grande, que supostamente mandou executar os inocentes, uma afirmação que é contestada por historiadores — Foto: GETTY IMAGES
"Baseando-se nas datas, a conclusão lógica é a de que Mateus está correto, ou seja, Jesus nasceu por volta de 4 a.C., nos últimos anos do reinado de Herodes, o Grande," afirma Javier Alonso.
Em contrapartida, o censo de Quirino não é plausível, e acredita-se que Lucas o utilizou como uma justificativa para transferir algumas pessoas que residem em Nazaré, no norte de Israel, para Belém, que é o local onde o messias deve vir ao mundo, e somente isso. Trata-se de uma técnica literária.
Piñero reconhece que se trata de uma declaração profética: "Considerando que se tem fé em Jesus como o messias, aceita-se a profecia de Miquéias, capítulo 5, versículo 1, que afirma que o messias nascerá em Belém, a mesma cidade onde Davi veio ao mundo."
A profecia contida no Antigo Testamento se realiza quando Jesus nasce em Belém.
O evangelho de Lucas relata que José e Maria precisaram ir a Belém para se inscrever no censo, mas estudiosos veem isso como uma figuração profética. — Foto: GETTY IMAGES
Os Evangelhos apresentam outras referências temporais que ajudam a localizar Jesus na história, mas não existem outros documentos que tenham registrado sua vida.
Flávio Josefo, o historiador judeu-romano do primeiro século, faz referência a Jesus em sua obra 'História dos Judeus', escrita aproximadamente no ano 95, mas o faz de forma superficial, sem mencionar seu nascimento", esclarece Piñero.
"É possível que você conheça a data de nascimento do imperador Augusto, mas não a de um pregador da Galileia; essa informação é desconhecida. Além disso, como menciona Alonso, os documentos que possuímos foram redigidos muito tempo depois."
Historiador Flávio Josefo — Imagem: GETTY IMAGES/BBC
Por que os primeiros cristãos não demonstraram interesse pela infância de Jesus?
Como pode Paulo não ter compartilhado nada sobre os primeiros anos de sua vida?
Por que Marcos, que redigiu o primeiro Evangelho aproximadamente 40 anos depois do falecimento de Jesus, não faz referência ao seu nascimento?
De acordo com Piñero, é importante considerar que, para os primeiros cristãos, a mensagem de Jesus indicava que a vinda do Reino de Deus era "iminente".
Não se tratava de um evento que ocorreria no futuro, no apocalipse ou após o dia do juízo.
Assim, não havia curiosidade em recordar episódios ou eventos específicos dos ensinamentos de seu profeta.
"Para o cristianismo dos primeiros tempos, a vinda do Reino era considerada bastante próxima, então, por que se preocupar?", comenta o estudioso.
Entretanto, à medida que os contemporâneos de Jesus faleceram e as próximas gerações notaram que o Reino dos céus não se manifestaria, surgiu a necessidade de registrar o que se conhecia sobre esse tema para repassá-lo às gerações futuras.
"O nascimento de Jesus na fé cristã inicial não possui relevância, pois a mensagem fundamental é que Ele sacrifica sua vida pelos pecados da humanidade e, em seguida, ressuscita. Isso representa a vitória sobre a morte. O restante é apenas secundário", afirma o historiador.
Entretanto, à medida que sua fama cresce, torna-se imprescindível aprofundar o conhecimento sobre o personagem, a fim de completar as informações ausentes em sua biografia.
Por essa razão, o cristianismo aborda a biografia de Jesus de uma maneira inversa. Os documentos mais antigos se concentram na sua morte e ressurreição. Em seguida, passam a discutir sua vida pública e os três anos de ministério. Por último, os relatos sobre o nascimento, presentes em Mateus e Lucas, são os mais recentes.
Somente os dois primeiros capítulos dos Evangelhos de Mateus e Lucas fazem referência à infância de Jesus — Foto: GETTY IMAGES.
Portanto, se as provas históricas nos levam ao ano 4 a.C., de onde surge a data do ano 1?
Neste contexto, um monge bizantino do quinto século, conhecido como Dionísio, o Magro, faz sua aparição.
Conforme detalha Piñero, por volta do ano 497, Dionísio encontrava-se em Roma quando recebeu uma comissão do Papa para estabelecer a data da Páscoa, com o objetivo de harmonizá-la com as celebrações das igrejas orientais.
E, após a data da Páscoa ter sido estabelecida, ele recebeu o convite para investigar com precisão o momento em que Jesus veio ao mundo.
Dionísio era especialista em cronografia, ou seja, dedicava-se ao estudo do tempo com base em documentos daquela época.
"Ele não dispunha das mesmas fontes que um historiador possui atualmente, por isso seguiu o que acreditava ser correto, mas cometeu enganos", defende Alonso.
O monge estabeleceu que Jesus veio ao mundo 753 anos após a fundação de Roma, considerando o ano 754 como o primeiro da era cristã.
Essa maneira de calcular os anos foi estabelecida ao longo do tempo e, com isso, surgiu o equívoco sobre a data de nascimento de Jesus.
Naquela época, durante o período romano, os anos eram contados de acordo com o reinado do imperador (por exemplo, o quinto ano de Tibério ou o quarto de Nero) e, em certas cidades, a data de sua fundação era utilizada para marcar o tempo, como era o caso de Roma.
O Cristianismo incorporou a celebração pagã do 'sol invicto' — Imagem: GETTY IMAGES
E O Dia 25 De Dezembro?
Dionísio não teve envolvimento algum nesse assunto, pois a data foi definida antes de sua participação.
Segundo Piñero, estamos diante de uma "invenção cristã": após o ano 380, o imperador Teodósio Magno proclamou o cristianismo como a única religião do Império Romano. "Quando a Igreja passa de ser perseguida a perpetradora de perseguições, busca integrar o máximo possível do paganismo dentro do Cristianismo."
No dia 25 de dezembro, o império comemorava a festa do "sol invencível", a data em que Zeus, o deus sol, venceu a escuridão.
Nada mais, nada menos que o solstício de inverno, a época em que os dias começam a se alongar.
O solstício ocorre no dia 21, porém os antigos comemoravam no dia 25, pois era quando começavam a perceber que o "sol invencível", representando Zeus, estava triunfando sobre a escuridão.
E quem era o sol invencível? Na verdade, era Jesus. Por isso, essa data foi cristianizada, e é convenção que o nascimento de Jesus ocorreu em 25 de dezembro", esclarece Piñero.
Neste mês, os romanos também festejavam a Saturnália, uma celebração em honra ao deus Saturno, durante a qual se penduravam grinaldas, trocavam presentes e até decoravam árvores, semelhante à tradição do Natal que conhecemos.
"Dessa forma, as datas são replicadas, trocadas e, muitas vezes, os costumes são alterados", observa Alonso.
Assim, foi apenas no século 4 que o nascimento de Jesus começou a ser comemorado.
E em que momento essa data passa a ser significativa como um feriado cristão?
A arte pode funcionar como uma pista, esclarece o historiador. Na igreja de San Vitale em Ravenna, datada do século VI e pertencente ao período do imperador Justiniano, "podemos observar, por exemplo, representações da adoração dos Reis, o que revela a relevância dada a eventos nos evangelhos ligados ao nascimento de Jesus".
Se a data que comemoramos não corresponde realmente ao dia do nascimento de Jesus, quais outras informações sobre seu nascimento os historiadores consideram definitivas?
Reescreve-se que, dado que os relatos sobre a infância de Jesus nos capítulos de Mateus e Lucas apresentam diferenças tão marcantes, "a ponto de dar a impressão de se referir a duas pessoas distintas", podemos, portanto, encarar as partes em que concordam como um provável fato histórico.
Na essência, seus pais eram chamados Maria e José, pertenciam a uma família bastante devota, e Jesus era originário da Galileia.
No entanto, Alonso tem uma opinião diferente: "Assemelham-se a dois relatos quase míticos", finaliza.
*Este artigo foi publicado pela primeira vez em 25 de dezembro de 2022.
O Natal tem Cristo como o principal motivo de celebração nas religiões.