Como os nazistas tentaram se apropriar de 'Noite feliz', uma das canções natalinas mais conhecidas no mundo | Mundo
Pode soar como uma brincadeira de péssimo gosto, mas na verdade não é.
Essa versão nazista da tradicional canção natalina "Noite Feliz", que foi exibida pela primeira vez há mais de duzentos anos, realmente existiu e foi tocada durante o Natal na Alemanha e nos países e regiões ocupados pelos exércitos do que ficou conhecido como Terceiro Reich ao longo da Segunda Guerra Mundial.
A nova edição integrava a tática do governo de Adolf Hitler de assumir a celebração religiosa, convertendo-a em mais uma ferramenta no extenso arsenal ideológico e publicitário que utilizava para garantir o domínio sobre a sociedade.
Os líderes nazistas, a princípio, se posicionaram como protetores do Natal, acreditando que essa celebração era uma das tradições mais genuínas da Alemanha. Contudo, posteriormente, procuraram alterá-la. — Foto: Getty Images via BBC
Natal, Uma Nova Vítima
Os nazistas não foram os pioneiros em direcionar suas atenções para o Natal.
"As ideologias totalitárias não toleram a existência de concorrentes. A história demonstra que todos os governos totalitários tentaram ou banir as festividades religiosas ou incorporar suas práticas", esclarece o historiador canadense Gerry Bowler à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.
Bowler recordou que "os dirigentes soviéticos tentaram eliminar o Natal e, em seguida, decidiram centralizar todas as celebrações na época do Ano Novo".
Entretanto, desde a época entre as duas guerras, o Natal na Alemanha já enfrentava severas críticas, não dos nazistas, mas dos comunistas e social-democratas.
Os defensores do SPD (Partido Social-Democrata da Alemanha) frequentemente descreveram o Natal como uma ilustração da exploração da burguesia, utilizando o solstício de inverno como uma analogia para a "nova vida e o novo ser" que surgiriam após a revolução socialista", afirma o historiador norte-americano Joe Perry, que também analisou as tentativas dos nazistas de incorporar essa celebração.
Os nazistas procuraram secularizar o Natal ao recuperarem entidades como o antigo deus pagão Wotan — Foto: Getty Images via BBC.
Os comunistas, por sua parte, não hesitaram em criticar as tradicionais feiras de Natal e a restringir qualquer forma de celebração religiosa em espaços públicos.
Esse ambiente favoreceu que os nazistas, inicialmente, adotassem a festividade religiosa como defensores, e posteriormente passaram a utilizá-la para fins de propaganda.
Um exemplo disso ocorreu em 1925, quando o futuro ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, divulgou uma carta em diversos canais de comunicação favoráveis ao nazismo, na qual responsabilizava os comerciantes judeus pela comercialização excessiva do Natal.
Posteriormente, ele fez uma analogia entre as lojas de departamento pertencentes a judeus e "bazares do Oriente", que, segundo ele, exploravam "os necessitados volksgenossen (companheiros) alemães".
A suástica e outros emblemas nazistas foram integrados às ornamentações natalinas — Foto: Getty Images através da BBC.
Enterrando O Menino Jesus
Ao assumirem o controle na Alemanha no começo de 1933, os nazistas adotaram uma nova abordagem.
"No entanto, uma vez que conseguem obter poder absoluto, suas metas se tornam mais audaciosas, desejando transformar o Natal em um evento de viés nazista e, aos poucos, desprover a festividade de suas raízes religiosas, retirando todos os aspectos ligados ao nascimento de Jesus," ele complementa.
Para alcançar esse propósito, eles receberam o apoio de pensadores e até de certos líderes religiosos, revelou Perry em sua obra "Natal na Alemanha: uma história cultural".
"O texto retratava o Natal como um momento em que uma 'estrela da manhã' emergia das trevas no dia 25 de dezembro, mas não mencionava Belém, José, Maria ou mesmo Jesus", revela.
O procedimento de nazificação da festividade envolveu a reestruturação das músicas de Natal mais conhecidas.
A canção "Noite Feliz" foi uma das que passaram por essa transformação. Portanto, no começo da década de 1940, toda menção a Jesus na música foi trocada por referências a Hitler.
"Os nazistas fizeram grandes esforços para reinterpretar as canções de Natal", afirma Perry, que notou que, entre 1920 e 1945, várias músicas natalinas foram reformuladas ou criadas por apoiadores do partido.
Os nazistas estavam cientes da influência emocional que elas provocavam.
A alteração na música não passou despercebida pelos Aliados. Assim, no Natal de 1941, o presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, e o primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, interpretaram a versão original após um encontro na Casa Branca, onde discutiram suas estratégias contra a Alemanha nazista.
Músicas populares, como "Noite Feliz", foram adaptadas para glorificar os líderes e os princípios do Terceiro Reich — Foto: Getty Images via BBC.
"Quão Feliz a Noite" não é apenas uma música natalina comum, mas sim uma das mais queridas nos países de língua alemã.
A canção — com letra criada pelo padre austríaco Joseph Mohr e melodia composta pelo professor e organista Franz Xaver Gruber — foi apresentada pela primeira vez na noite de Natal de 1818, na pequena localidade de Obendorf, próxima a Salzburgo, na Áustria, enquanto a Europa tentava se reerguer após os estragos das guerras napoleônicas.
A linda melodia começou a circular, de pessoa para pessoa, pelos povoados próximos, até alcançar a corte imperial da Áustria e, a partir de lá, se difundiu para outras cortes, segundo o especialista.
Entretanto, devido ao fato de o manuscrito original ter permanecido desaparecido por muitos anos, a identidade de seus autores permaneceu oculta. Apenas em 1995, quando o documento foi descoberto, foi possível verificar que Mohr e Gruber eram os responsáveis pela sua criação.
Quatro décadas atrás, a música ocupava uma posição central em um acontecimento singular e sem comparações, que, segundo especialistas, levaria à sua ampla divulgação: a trégua de Natal.
Em 2011, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) a reconheceu como um Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.
O Natal tem suas raízes profundamente enraizadas na cultura alemã, e costumes como a árvore de Natal têm origem nesse país — Foto: Getty Images via BBC
Uma Fé Para Os Que São Fracos
Durante o período nazista, muitos de seus líderes e pensadores acreditavam que as ações adotadas para incorporar o Natal eram inadequadas — e que era preciso fazer mais.
Qual era, então, a questão dos nazistas em relação ao Natal? Bowler defende que a origem do desentendimento não se encontrava na celebração em particular, mas sim no cristianismo de modo geral.
Hitler e Mussolini enxergavam o cristianismo como uma fé destinada aos frágeis, esclarece o historiador, destacando que o fato de Jesus ser judeu e ter aceitado a crucificação por autoridades religiosas judaicas não era bem recebido pelos pensadores fascistas.
Isso, mesmo considerando que, em 1921, durante um evento político em uma cervejaria em Munique, o próprio Hitler critiou "os judeus medrosos por anunciarem o salvador da humanidade na cruz".
Os esforços dos nazistas para 'apropriar-se' do Natal não foram bem aceitos pela maior parte dos alemães, que continuaram a preservar suas tradições originais de forma particular — Foto: Getty Images via BBC
As manobras dos nazistas não foram bem recebidas pelos líderes religiosos, que, de forma secreta, orientaram seus ministros e sacerdotes a manter a realização das celebrações de Natal de acordo com a tradição, desconsiderando as alterações aprovadas pelo governo.
Alguns chegaram a se manifestar de forma pública contra isso.
"Um padre informou que poderia excomungar as mulheres que se associassem à Liga Nacional Socialista das Mulheres, que era uma das entidades ligadas ao partido nazista", recorda Perry.
Os devotos imitaram o modelo, afirma Bowler, que creditou a essas resistências diárias e discretas a razão pela qual a celebração conseguiu se manter durante esse período.
É possível afirmar que a Alemanha é uma das nações que mais cultuam o Natal, uma vez que o país é responsável por uma grande quantidade de músicas natalinas e por tradições que hoje são celebradas em todo o mundo, como a árvore de Natal e a coroa natalina.
Três costumes natalinos na Europa