Bacalhau: o rei de Portugal que não vive por lá e ainda conquistou o Brasil

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Portugal

Ao refletir sobre a culinária portuguesa, qual é o primeiro prato que surge em sua mente? É bem provável que seja o bacalhau.

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Enquanto no Brasil o prato se destaca especialmente durante o Natal e a Páscoa, em Portugal uma expressão popular diz que "há 365 maneiras de cozinhar o bacalhau, uma para cada dia do ano".

De fato, é suficiente caminhar pelas ruas de Lisboa ou por qualquer outra cidade de Portugal para desfrutar do peixe apresentado em bolinhos, em pedaços, em filés, em risotos, em sopas, frito, assado, cru e até mesmo em churrascos.

O grande protagonista das refeições em Portugal, o bacalhau, é responsável por 20% do consumo global desse peixe. Curiosamente, não há um único exemplar da espécie nas águas portuguesas! Essas variedades de peixe preferem as frias regiões do Ártico, encontrando-se principalmente na Noruega, Islândia e Rússia, de onde provém a enorme quantidade que os portugueses consomem anualmente. E a quantidade é impressionante, pois, em média, cada pessoa em Portugal ingere cerca de 15kg de bacalhau por ano, conforme dados do Norwegian Seafood Council (NSC).

Não é surpreendente que enormes fábricas de processamento de peixe estejam localizadas ali, de onde são produzidos milhares de quilos de bacalhau que seguem para diferentes partes do mundo, incluindo o Brasil. Vale lembrar que o Brasil, apesar de não contar com peixes da família do bacalhau em seus mares, se tornou o segundo maior consumidor dessa iguaria no planeta.

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Convidada pela Caxamar, uma empresa com 35 anos de experiência no processamento de peixe, a CNN Viagem&Gastronomia chegou a Portugal para explorar o papel central do bacalhau na culinária portuguesa.

Durante cinco dias, desfrutamos de refeições abundantes e diversas receitas de bacalhau, todas mais surpreendentes que a anterior, ao lado de Gonçalo Bastos, CEO e Presidente do Conselho da Caxamar, e Abner Almeida, CEO da distribuidora Caxamar no Brasil. Desde 2021, Abner tem trazido para o Brasil cerca de 300 toneladas mensais, o que representa aproximadamente 13% a 15% de toda a produção da marca.

Da Garagem Dos Bastos Para O Mundo

A Caxamar ilustra perfeitamente a demanda por bacalhau, que possui tanto um mercado robusto quanto muitos admiradores em ambos os países. A marca teve suas origens na garagem do casal Manuel e Madalena Bastos, que se dedicava a comprar e vender o peixe já curado em feiras e mercados da região, levando seus filhos, Gonçalo e Elisabete, para auxiliá-los nas vendas nos finais de semana.

Ao longo dos anos, os filhos que se desenvolveram – de verdade – entre os bacalhaus tomaram as rédeas do empreendimento, que se tornou uma das mais relevantes marcas de processamento desse peixe. Eles deixaram de adquirir o pescado já salgado e passaram a negociar diretamente na fonte. Atualmente, gerenciam todo o procedimento, desde o instante em que o peixe é retirado do barco até sua chegada à mesa dos clientes.

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Atualmente, a empresa possui duas fábricas nas proximidades de Lisboa e gera uma receita de 40 milhões de euros anuais (mais de 200 milhões de reais), com expectativas de crescimento entre 15% e 20% para 2024. Sua produção anual chega a 7.500 toneladas de bacalhau demolhado e seco, e a empresa conta com mais de 150 colaboradores. Além disso, há planos para inaugurar uma terceira unidade e está presente em 11 países, incluindo França, Alemanha, Espanha, China e Angola, sendo o Brasil o seu principal cliente internacional.

O Brasil tem um papel fundamental para a marca, sendo o único país a ter uma distribuidora e um CEO dedicados. A equipe local é composta por mais de 30 colaboradores e segue uma estratégia ousada voltada para o mercado B2B, firmando colaborações com renomados restaurantes, como Casa Santo Antônio, Fasano, Rancho Português e Carlota, entre outros.

Bacalhau: Peixe, Processo Ou Prato?

Uma questão comum entre os consumidores é que o bacalhau não se refere a uma única espécie de peixe, mas sim a um termo genérico utilizado para diversas espécies. É importante destacar que, no Brasil, há uma tradição de consumir bacalhau que foi submetido ao processo de salga e secagem. Por outro lado, em lugares como Portugal e Noruega, o bacalhau também é apreciado em sua forma fresca ou congelada.

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Um outro aspecto polêmico é que, no Brasil, a norma jurídica reconhece apenas três espécies de peixes como bacalhau: Gadus morhua, Gadus macrocephalus e Gadus ogac. As demais variedades devem ser denominadas como “tipo bacalhau”. Em outros lugares, essa regra não é adotada.

Durante a visita à unidade produtiva da Caxamar, tivemos a oportunidade de ver de perto as distinções entre os tipos de peixes. Apesar de o Gadus morhua e o Gadus macrocephalus serem os protagonistas na fabricação da marca, eles também lidam com Saithe, Zarbo e Ling. A principal diferença entre essas variedades reside no tamanho e na coloração da carne.

O Gadus morhua e o Gadus macrocephalus apresentam postas espessas e são mais suculentos, se desmanchando em grandes e saborosas lascas. Já os outros, que são menores, recebem cortes variados e frequentemente são comercializados desfiados ou em lascas, sendo ideais para a preparação de bolinhos, saladas e outras iguarias saborosas.

Curiosidade: o pirarucu, o imenso peixe das águas do Rio Amazonas, quando vendido em processo de salga, é popularmente conhecido como bacalhau amazônico. Contudo, como já foi mencionado, ele não pode ser classificado oficialmente como bacalhau.

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Chefs Portugueses E Sua Ligação Com O Bacalhau

Vitor Sobral, chef português responsável por sete restaurantes espalhados pelo Brasil e Portugal, é um autêntico representante da culinária portuguesa. Com estabelecimentos em São Paulo, Cascais e Lisboa, ele já atendeu a um grande número de presidentes e até mesmo papas. Autor de 24 publicações, entre elas "Minhas receitas de bacalhau: 500 receitas", sempre que pode propaga a ideia de que "os estrangeiros não podem acreditar que só consumimos bacalhau; possuímos uma grande variedade de peixes e frutos do mar, mas precisam aprender a apreciar um bom bacalhau".

Com negócios em São Paulo, o seu restaurante Tasca da Esquina, localizado nos Jardins, representa 70% do consumo de bacalhau de todos os seus estabelecimentos, incluindo os de Portugal. Isso já demonstra a forte relação dos brasileiros com esse peixe. Ao ser questionado sobre o que o motivou a abrir restaurantes portugueses no Brasil, sua resposta é clara: “tenho uma grande admiração pelo povo brasileiro e, ao longo dos meus 35 anos de viagens ao Brasil, percebi que o conhecimento sobre a culinária portuguesa entre os brasileiros era bastante restrito; eles conhecem bem o bacalhau, mas não estão familiarizados com uma boa forma de prepará-lo.”

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O chef considera que a relação dos portugueses com o bacalhau pode ser analisada sob diversos aspectos, incluindo seu perfil como um peixe magro e rico em colágeno. Quando é preservado em sal e desidratado, não sofre deterioração, tornando-se uma proteína de fácil transporte. Além disso, entre os séculos 19 e 20, os pescadores portugueses estavam isentos de participar das guerras coloniais. Esses fatores contribuíram para que o bacalhau, assim como as sardinhas em conserva, se solidificasse como um símbolo da gastronomia portuguesa ao redor do mundo, especialmente nos países de língua portuguesa.

Por sua vez, Miguel Peres, chef e empresário responsável pelo Pigmeu, um restaurante de grande sucesso em Lisboa que não oferece bacalhau, mas sim, como o nome indica, pratos à base de porco, possui outras considerações significativas sobre o protagonista da culinária portuguesa – que, talvez, não tenha o mesmo apelo de marketing que o bacalhau.

Do rabo à cabeça, cada parte do porco é utilizada em seu restaurante, onde ele declara: “o porco é o autêntico ingrediente português; o bacalhau pode ter a notoriedade, mas o porco sempre foi essencial na dieta das famílias, de norte a sul do país. Muitas pessoas criavam seu próprio porco, garantindo alimento para toda a família durante o ano todo. Para se ter uma noção, a média de consumo de carne de porco por português é de 41kg anualmente, enquanto o bacalhau fica em apenas 15kg.”

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A relação dos portugueses com o bacalhau é bastante extensa. De acordo com Miguel, durante a Idade Média, Portugal estabeleceu comércio de sal por bacalhau com os vikings. O país sempre importou esse peixe, seja através de trocas diretas com a Noruega ou com os ingleses. No final do século 15, com as navegações, os portugueses alcançaram a Groenlândia e a Terra Nova (atual Canadá), regiões onde o bacalhau era encontrado em grande quantidade. Além de realizar expedições de caça às baleias, começaram também a pescar bacalhau nessas áreas. Com isso, o bacalhau passou a ser um ingrediente muito comum na culinária portuguesa.

Entretanto, de acordo com o chef, a relevância atribuída ao bacalhau na culinária portuguesa é reflexo das políticas implementadas durante o período de ditadura que o país enfrentou. Sob a justificativa de diminuir as exportações, o governo de Salazar lançou a conhecida “Campanha do bacalhau”, reestruturando as frotas de pesca e realizando várias iniciativas que promoviam o bacalhau como “o pão dos mares”. Nesse cenário, ocorreu um processo de nacionalização cultural de um peixe que nem mesmo habita as águas costeiras do país, mas que acabou sendo incorporado como um ícone da gastronomia nacional.

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É interessante notar que a campanha do bacalhau fazia parte de diversas iniciativas, assim como a campanha do trigo, que visavam manter o custo de vida baixo, evitando a necessidade de aumentar os salários. Com isso, o governo conseguia “adquirir” a paz social, fundamental para a continuidade do regime autoritário, ao garantir que os preços dos alimentos e da moradia permanecessem ao alcance da população. O bacalhau já era uma proteína amplamente consumida no país, tinha boa durabilidade, podia ser pescado em grandes quantidades e, ao ser capturado localmente, seu preço se mantinha razoável. Dessa forma, o regime elevou o bacalhau à condição de símbolo nacional.

A campanha alcançou resultados expressivos. Em 1935, a nação começou a produzir aproximadamente 10% do bacalhau consumido internamente, enquanto nos anos 60 esse percentual subiu para cerca de 70%. Ademais, diversas ações de marketing foram realizadas, tanto durante aquele período quanto no pós-ditadura. Programas de TV, publicações e revistas de gastronomia exibiam milhares de receitas de bacalhau, sendo apoiadas ora pelo governo, ora pelas empresas que vendiam o peixe.

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"Na minha opinião, essa situação é bastante hilária; parece quase um paradoxo que um país como Portugal, que possui tanta variedade de peixe e frutos do mar em sua costa, além de uma cultura tão rica associada ao porco, tenha como emblema nacional um peixe que vem de fora! Creio que deveríamos pensar sobre isso e promover uma campanha nacional em favor do porco."

Na realidade, seja por influência do marketing ou não, Portugal se consolidou como a nação do bacalhau. Ao se acomodar em uma de suas mesas – e sugeriremos algumas adiante que oferecem diferentes e impecáveis preparações de bacalhau – fica claro que este peixe é um ícone de identidade e tradição, conectando gerações e narrativas de um povo que vive intensamente através dos sabores.

Quatro Lugares Imperdíveis Para Comer Bacalhau Em Portugal

Aqui se prepara um bacalhau excepcional. Este estabelecimento, que se destaca em peixes e frutos do mar, tem conquistado o paladar dos clientes há 40 anos sob a liderança de Manuel Pinheiros e a gestão dos irmãos João e José Silva. É um local ideal para passar horas saboreando todo o cardápio, acompanhado por uma boa garrafa de vinho. No andar superior, há um balcão rodeado por aquários, de onde são retirados muitos dos frutos do mar que são servidos na frente dos clientes, criando uma oportunidade perfeita para saborear um chope com mariscos antes de começar a refeição. Não se esqueça de solicitar a tarte de amêndoas como sobremesa.

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É fundamental garantir uma reserva, pois este é um local bastante concorrido por moradores e visitantes.

O Gaveto: Rua Roberto Ivens, 826 4450-286 – Matosinhos – Portugal.

O restaurante Via Graça, sob a direção do chef Miguel Palma, proporciona uma vista incrível da cidade e um ambiente que combina modernidade e sofisticação, tornando-se um local bastante requisitado. No cardápio, podem ser encontrados pratos tradicionais da culinária portuguesa, todos com a assinatura especial do chef, como o Bacalhau à Brás, o Polvo à Lagareiro e o Cordeiro assado com batatas e espinafre, entre outras iguarias. Para vivenciar uma autêntica experiência portuguesa, não deixe de experimentar a Sericaia acompanhada de sorvete de ameixa d’Elvas como sobremesa.

Via Graça: Rua Damasceno Monteiro 9-B, 1170-108 – Lisboa – Portugal.

Uma verdadeira joia da gastronomia, quase oculta. O Rito está em funcionamento desde 1974, com a matriarca, Maria Amélia, encarregada da cozinha, enquanto seu filho, Bruno, cuida do atendimento no salão, fazendo com que os clientes se sintam em casa. No cardápio, a molhanga é um prato que não pode ser deixado de lado: uma especialidade composta por molho de tomate bem saboroso, ovos, lascas de bacalhau e cubos de pão torrado, resultando em uma explosão de sabores. Também é imprescindível experimentar o arroz de grelos, a açorda de bacalhau e as inigualáveis sobremesas à base de ovos, como o bolo de nozes com um recheio cremoso de ovos.

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O Rito: Via principal, 2, 249542-841 – Ourém – Portugal

Reconhecido tanto por visitantes quanto por residentes, o JNcQUOI se destacou desde que iniciou suas atividades, há sete anos, no icônico prédio Tivoli. É um espaço perfeito para observar, ser notado e, evidentemente, para apreciar uma boa refeição. Os chefs António Bóia e Filipe Carvalho lideram um cardápio que combina pratos tradicionais com inovações ousadas, oferecendo um delicioso bacalhau gratinado com cebolas e um excelente arroz de tomate com bacalhau.

JNcQUOI Avenida: Avenida da Liberdade, 182-184 – Lisboa – Portugal.

A repórter foi a Portugal a convite da Caxamar.

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