O significado do Natal para diferentes religiões no Brasil
O Natal é uma das datas mais significativas no calendário ocidental, caracterizado por festividades que ocorrem entre os dias 24 e 25 de dezembro. No contexto da cultura cristã, essa celebração é uma homenagem ao nascimento de Jesus Cristo em Belém, uma cidade situada na atual Cisjordânia, que é um território palestino sob ocupação israelense. A etimologia da palavra Natal vem do latim, derivando de "natalis", que se traduz como "nascer".
Determinar a origem precisa do Natal é complicado, uma vez que faltam fontes históricas concretas. Considerado um evento cristão, acredita-se que a celebração tenha surgido entre os séculos II e IV d.C. Naquela época, a data do nascimento de Jesus não era conhecida com exatidão. A hipótese mais aceita é que a comemoração do Natal tenha derivado de festividades pagãs da Roma antiga, realizadas por volta de meados de dezembro.
As festividades romanas estavam diretamente ligadas ao solstício de inverno (no hemisfério norte), um evento astronômico que marca a noite mais longa do ano e dá início à estação do inverno. Durante essa época, era comum promover grandes celebrações para assegurar a fertilidade da terra e festejar o “renascimento” do sol, visto que o solstício de inverno representa o dia com menor duração de luz solar. Com o passar do tempo, a adoração ao sol foi se conectando ao nascimento de Jesus de Nazaré – simbolizando assim a luz que ilumina o mundo.
No Brasil, a fusão de religiões liga Jesus Cristo a Oxalá. Em tradições como a Umbanda, é comum encontrar figuras de Jesus e de Nossa Senhora em seus templos, além da menção a Jesus em diversas músicas. Dentro da cultura iorubá, Oxalá é uma das divindades mais antigas, sendo o Orixá que guarda a vida e a criação da humanidade. Sua força é representada por suas roupas brancas, que simbolizam seu elevado padrão ético e moral.
No Brasil, um país de imensas dimensões e diversidade, o Natal integra as festas sociais e culturais, transcendendo o seu aspecto religioso. Para esta matéria, o ICL Notícias consultou líderes do Candomblé, da Umbanda, do Catolicismo e de Igrejas Evangélicas, buscando uma reflexão sobre essa data. Apesar de algumas semelhanças entre as realidades, as práticas variam de acordo com cada terreiro, cada igreja e cada templo. Generalizações não são viáveis. De modo geral, a mensagem que prevalece é de união e fortalecimento, tanto na fé em Jesus Cristo quanto em Oxalá, sempre com respeito mútuo.
Natal E Candomblé: Uma Conexão Especial
Em uma entrevista, o Babalawô Ivanir dos Santos, que é pesquisador e coordenador de uma área de estudos no Laboratório de História das Experiências Religiosas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LHER/UFRJ) e também escreve uma coluna para o ICL Notícias, discutiu o Natal sob o ponto de vista de sua religião.
“No Candomblé, segundo a perspectiva iorubá, que tem raízes africanas, a prática ritual não se relaciona com o Cristianismo. Orixá representa as forças da natureza. Sem a natureza, os Orixás não existem. Sem folhas, não há Orixás. Todo esse conceito é anterior à figura de Jesus Cristo. Se seguíssemos o calendário iorubá, por exemplo, o novo ano começaria no primeiro domingo de junho. Contudo, estamos no Brasil, e é natural que vivenciemos um candomblé que foi moldado em nosso território. Existe uma rica tradição milenar que celebramos: o que é sagrado engloba a terra, a água, o ar e o fogo. Esse entendimento não está relacionado com o Cristianismo. É importante lembrar que, nos séculos 18 e 19, aqui no Brasil, a Igreja era parte integrante do Estado, e as datas eram celebradas como feriados. Isso reflete uma relação de poder que remete à colonialidade. Nesse período, os escravizados realizavam suas homenagens. As duas manifestações dialogavam entre si. Havia uma permissividade para afirmar que Iansã é equivalente a Santa Bárbara, embora Iansã tenha raízes muito mais antigas. Uma coisa não se conecta diretamente com a outra”, esclarece Ivanir.
De acordo com o babalawô, considerando que o Candomblé é uma tradição afro-brasileira, essa religião estabelece um diálogo com a Igreja Católica. Assim, o Natal é celebrado como uma importante oportunidade de união entre as pessoas, embora não tenha um significado religioso dentro do culto.
Celebramos diversas festividades, como a festa do Boi de Oxóssi, a Fogueira de Xangô, o Balaio de Oxum e de Iemanjá, entre outras. No entanto, o Natal, por sua essência, está mais associado a um encontro em família. Sendo brasileiros, nossas famílias são bastante diversas, algo que faz parte da nossa cultura. Usamos a expressão "Feliz Natal" como uma saudação comum. É um período marcado por alegria e solidariedade, de acordo com nossa tradição. Ao chegarmos ao Ano Novo, para simular a passagem do tempo, realizamos um ritual que chamamos de Osé da casa, que consiste em lavar nossos lares e nosso terreiro, preparando-nos assim para um ano que se inicia de forma positiva.
O Natal Sob A Perspectiva Dos Umbandistas
Na Bahia, na cidade de Juazeiro, Tata Edson do Congá do Seu Zé explica que sua atuação se fundamenta nas tradições africanas, especialmente na cultura bantu – os grupos que chegaram ao Brasil entre os séculos 16 e 17. Segundo a filosofia bantu, os ciclos têm um papel crucial na existência. Há uma compreensão de que é essencial evoluir, formar comunidade, alcançar metas pessoais em harmonia com o grupo e manter conexão com os ancestrais. “Não seguimos o calendário cristão e não celebramos o Natal. Essa não é uma prática nossa. Contudo, ao final do ano, realizamos uma série de rituais, pois entendemos que a transição de um ano para o outro representa a conclusão de um ciclo de vida”, afirma.
"Para dar início a um novo ciclo de forma positiva, garantindo que todos estejam com boa saúde, fortalecidos espiritualmente e em sintonia com seus antepassados, realizamos um ritual de final de ano. Nos encontramos para refletir sobre a trajetória até aqui e identificar o que deve ser transformado. Fazemos consultas com os membros da casa, além de limpezas espirituais e descarregos. Em seguida, temos uma conversa geral com Seu Zé Pelintra, que orienta a todos sobre áreas a serem melhoradas, faz um balanço do ano e indica como cada um pode se fortalecer para enfrentar os desafios que virão. Após o período de reflexões, celebramos nossa confraternização. Encerramos com o banho da virada, um banho de ervas que preparamos para o último dia do ano e para a nova fase que se inicia."
Além desses rituais, Tata Edson esclarece que, de acordo com a tradição africana bantu, é imprescindível que o ano se encerre com as atividades de Exus, Pombagiras, Pretos Velhos e Pretas Velhas. “Eles são responsáveis por completar os ciclos dentro de nossa residência. Exus e Pombagiras resolvem questões relacionadas a conflitos, caminhos e aspectos materiais; já os Pretos Velhos e Pretas Velhas cuidam de aspectos espirituais e afetivos.” Para o início de 2025, a festividade terá um foco especial na licença dos caboclos, que são conhecidos como “ancestrais da terra”. Portanto, antes de qualquer outra atividade, os primeiros trabalhos do ano são dedicados a honrar os caboclos.
Em outras palavras, os rituais estão mais conectados ao encerramento e ao começo do ano, à passagem de ciclos, e não ao próprio dia do Natal. “A nossa sociedade desacelera, entra em um período de pausa, é feriado... assim, nos alinhamos a esse calendário, pois as pessoas seguem essa lógica, necessitam de descanso e têm dias livres do trabalho... mas não nos fixamos no aspecto religioso da data. O que realizamos depois são homenagens a Oxóssi — para que o novo ano seja abundante e cheio de prosperidade.”
Filhos do Congá do Seu Zé, um terreiro de umbanda situado em Juazeiro, na Bahia.
No Rio de Janeiro, Paulo Júnior, Babalorixá do T.E.U. Choupana de Oxóssi, explica como são realizadas as atividades no terreiro durante essa temporada do ano. "Na nossa Umbanda, Jesus também é o nosso guia, e seu evangelho serve como uma ferramenta para moldar o caráter. Neste momento, a maioria das religiões cristãs celebra o Natal, que marca a encarnação de Jesus. Esse período coincide ainda com o final do ano e a festa de Reveillon. Embora adotemos um intervalo, isso não se deve ao Natal, mas sim à necessidade de descanso e celebrações. Nosso terreiro de Umbanda permanece ativo o ano inteiro, realizando consultas, passes e desenvolvendo projetos de apoio à comunidade, além de oferecer solidariedade aos irmãos que estão em situações de vulnerabilidade. Contudo, ao chegarmos ao final do ano, optamos por esse recesso para que os médiuns possam reorganizar suas vidas, celebrar com suas famílias e descansar um pouco", ressalta.
O terreiro celebra esse período com a última cerimônia do ano. “É um instante de introspecção, de união, de amizade e de amor, assim como Jesus. Concluímos nosso ano para descansar e voltar no ano seguinte. É um tempo de confraternização. Dentro da nossa prática, preparamos a canjica de Oxalá ou, como alternativa, oferecemos pão, peixe e vinho, representando a Santa Ceia mencionada no evangelho. Esses alimentos nutrem a nossa comunidade, junto às reflexões, com as palavras pronunciadas no terreiro e um profundo sentimento de amor”, compartilha o babalorixá.
"O encerramento é uma celebração significativa em homenagem ao governador do nosso planeta, Cristo Jesus, relembrando seus ensinamentos e sua mensagem, e refletindo sobre como podemos aplicar tudo isso em nossas vidas. É importante ressaltar que, dentro da nossa fé umbandista, reconhecemos Jesus como um espírito de alta evolução", comenta. O babalorixá ressalta que, mesmo para aqueles que não seguem uma religião, a história de Jesus serve como um valioso guia de fraternidade. "Quando afirmamos que Jesus é a salvação, nos referimos à sua palavra como a verdadeira salvação, um guia para todos nós que estamos aqui na Terra. A principal mensagem que ele deixou é de amizade e perdão. A ideia de que a única lei que deveria reger o nosso mundo é a lei do amor. Devemos avançar nessa direção."
Filhos da Choupana de Oxóssi, um terreiro de umbanda localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, durante a última celebração do ano.
Em Maceió, no estado de Alagoas, a pastora Odja Barros lidera a Igreja Batista do Pinheiro há mais de três décadas. De acordo com ela, a comemoração do Natal, assim como a da Páscoa, é semelhante em todas as denominações cristãs. A mensagem natalina é universal entre os fiéis do cristianismo. Embora cada igreja tenha sua própria forma de celebração, é difícil se desviar do significado central. “Durante o período em que celebramos o Natal, dentro da tradição cristã, ocorre um encontro. O Natal é o momento em que Deus acolhe a humanidade, torna-se humano, uma criança, insere-se na história e se humaniza”, explica.
Ao nos referirmos à Igreja Batista ou aos protestantes e evangélicos, reconhecemos um Deus que se manifesta na figura de uma criança desprotegida nas margens da sociedade. Este Natal é vivenciado por mulheres, representado por uma jovem também oriunda de uma área marginalizada, Nazaré da Galileia, reforçando a escolha divina de vir ao mundo através do corpo de uma mulher em uma cultura que, em muitos aspectos, pode ser considerada ainda mais opressiva do que a nossa. O corpo feminino gera o Salvador por meio de uma intervenção divina. Isso é um conceito ainda desafiador para a nossa sociedade, imagine então para aquele período. Deus não veio ao mundo através de um imperador ou de um rei, mas sim no seio dos indivíduos mais oprimidos pelas estruturas de poder, trazendo consigo uma mensagem que é não apenas política, mas também de fé capaz de transformar a realidade.
Celebração de Natal na Igreja Batista do Pinheiro, localizada em Maceió, Alagoas.
A igreja sob a liderança de Odja se une de forma ecumênica no Natal para comemorar a data ao lado de protestantes e católicos. As celebrações têm início quatro semanas antes do Natal, durante um período conhecido como "advento" (que vai do primeiro domingo de novembro até o último), caracterizado por uma preparação ritual que simboliza a expectativa pela chegada da criança que está por nascer. Os membros da congregação se encontram para cultos, leituras da Bíblia e momentos de reflexão, reconstituindo a cena do Natal conforme descrito nos evangelhos.
“Isso é extremamente significativo para nós. Nossa intenção é nunca deixar de vivenciar a essência do Natal: a esperança durante tempos difíceis. A Bíblia nos ensina, em Isaías 9:2: ‘o povo que habitava na escuridão viu uma grande luz’. Essa grande luz representa a vinda de Jesus – que ilumina o mundo. Quem de nós não precisa renovar a esperança em nosso espírito e coração constantemente? O Natal reaviva essa luz interna que brilha novamente, mesmo nas pequenas coisas. Ninguém imaginava que aquela criança humilde se tornaria o Cristo. Precisamos reduzir a importância que atribuíssemos ao consumismo e aos presentes, e focar mais na mensagem que nos diz: veja, está escuro, o clima está pesado, as coisas estão difíceis, mas o Natal nos recorda que existe luz”, afirma Odja.
No Rio de Janeiro, o pastor Valdemar Figueredo, que também escreve para o ICL Notícias, enfatiza que as igrejas evangélicas apresentam diversas formas de expressão. Em sua homilia natalina, ele realçou a ideia de que “sempre é véspera de Natal” e citou Rubem Alves, que disse: “É difícil imaginar José e Maria tomando digestivos, por terem comido em excesso, na véspera de Natal.” A mensagem central é que devemos nos recordar de que a vida tem um valor superior ao das posses materiais. Seguindo o exemplo de Jesus, devemos priorizar as pessoas e utilizar as coisas, e não o contrário.
Para ilustrar a filosofia de Jesus, ele estabeleceu comparações com menções ao desprendimento de Jesus em trechos da Bíblia — promovendo uma reflexão sobre um espírito natalino que se estenda além de dezembro e transcenda o âmbito religioso.
O que foi cedido a Jesus? A manjedoura onde Maria e José colocaram o recém-nascido foi emprestada (Lucas 2.7). O recipiente utilizado para tirar água do poço para o viajante sedento foi cedido pela mulher samaritana (João 4.11). Os pães e peixes que Ele multiplicou para saciar a multidão foram oferecidos por um menino (João 6.9). A embarcação que serviu como plataforma para ensinar as pessoas e realizar pequenas travessias foi concedida pelo pescador Simão (Lucas 5.3). Durante sua entrada triunfal em Jerusalém, Ele montava em um jumentinho, que foi emprestado por um amigo anônimo (Lucas 19.30, 31).
O cenáculo onde ele compartilhou a última ceia de Páscoa com seus amigos era emprestado, pois ele não possuía um lugar para descansar a cabeça (Lucas 22.10-12). O sepulcro onde foi enterrado foi cedido por José de Arimatéia (Lucas 23.50-53). Ao nascer, não havia espaço para sua família na estalagem. Maria o envolveu, provavelmente, com panos improvisados em vez de mantas apropriadas para bebês (Lucas 2.7). Após sua morte, seu corpo foi retirado da cruz e coberto com um lençol de linho, representando, na verdade, o último empréstimo de José de Arimatéia (Lucas 23.50-53). Maria Madalena e outras amigas foram ao sepulcro com a intenção de perfumar o local com os aromas que haviam preparado. Surpresas, perceberam que a pedra que selava o túmulo havia sido removida e que não havia corpo para ungir. O que encontraram foi apenas o lençol de linho (Lucas 24.1-12).
Valdemar procura transmitir que, ao vir ao mundo, Jesus não tinha um lar e, ao falecer, não possuía um local para descansar. “Que em 2024 possamos viver experiências com o sagrado ao termos a audácia de viver nossa humanidade, profundamente humanos. Um pequeno fio de esperança que surge em um período de grande descontentamento, onde indivíduos são reduziidos a meros objetos e bens materiais são venerados”, concluiu.
Frei David dos Santos, um franciscano e criador da rede de cursinhos Educafro, teve uma conversa com nossa equipe sobre o significado dessa data.
"O Natal simboliza o ápice do plano divino realizado por meio de Jesus. Ele carrega uma força de ensinamentos para aqueles que desejam se comprometer a melhorar o mundo. É essa energia transformadora que inspirou figuras como Martin Luther King, Irmã Dulce e muitos outros indivíduos notáveis, que enfrentaram desafios semelhantes aos nossos e se dedicaram ao máximo para proporcionar o verdadeiro significado do Natal a muitas pessoas", explica.
Para ele, a Igreja Católica enfrenta um momento de crise. “O Natal se tornou apenas um ritual estético, correndo o risco de se transformar em uma ofensa ao menino Jesus do presépio. A igreja já não consegue mais atrair crianças e jovens. Há bastante tempo, perdeu o vínculo com a população afro-brasileira ao persistir em realizar uma missa eurocêntrica, ignorando e marginalizando as culturas indígenas e afro-brasileiras”, afirma. “O Natal representa o auge da compreensão do ato de doar-se ao próximo. É triste ver como a maldade do capitalismo, voltado ao lucro, distorceu o verdadeiro espírito natalino. É urgente que criemos um capitalismo mais humano, um novo sistema global onde o social esteja no centro. Caso contrário, deixaremos que a força destrutiva do capital aniquile a humanidade”, conclui.