Crítica: Todo Dia a Mesma Noite funciona, mas não consegue ...

26 Jan 2023

Em uma manhã de domingo, um dos primeiros daquele ano, o Brasil acordava chocado pelas notícias que chegavam pela televisão. Em uma época em que a internet não tinha a rapidez e abrangência que tem hoje, as informações se amontoavam aos poucos. Cada atualização era uma dor, um desolamento.

Uma das noite mais brutais do Rio Grande do Sul e do país chegava ao fim. Começava um dos períodos de luto mais tristes da nossa história. A partir dali, para muita gente, parecia que era Todo Dia a Mesma Noite.

No Sul, para quem se pergunte, a resposta é sempre semelhante: “lembro do dia como se fosse ontem“. A tragédia na Boate Kiss entrou para o imaginário coletivo. Marcou o estado, o país, mas principalmente a cidade de Santa Maria, para sempre. Hoje, dez anos após o incidente, a Netflix lança uma minissérie baseada no best-seller “Todo Dia a Mesma Noite”, de Daniela Arbex.

Imagem: Netflix/divulgaçãoMinissérie é baseada em livro de sucesso

O livro, uma grande reportagem escrita como um romance, traz alguns dos relatos e detalhes mais impressionantes sobre o caso. O programa da Netflix, então, se debruça em grande parte destes testemunhos e pessoas para contar sua versão dos fatos.

Em um primeiro momento, o projeto soa deslocado. Um dos grandes motivos é a nossa falta de costume com dramatizações de casos nacionais reais.

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Afinal, estamos habituados a acompanhar adaptações de histórias norte-americanas. Para o público, acompanhar dramas sobre crimes e tragédias estrangeiras é normal, mas projetos nacionais são tachados como desrespeitosos.

Todo Dia a Mesma Noite, entretanto, respeita a história e os envolvidos. Nossa proximidade com o caso, claro, faz com que nos tornemos mais críticos, receosos, mas a minissérie jamais explora o fato como diversão.

Imagem: Netflix/divulgaçãoDor e angústia permeiam os episódios de Todo Dia a Mesma Noite

Desde o princípio, a minissérie é cercada por uma aura de tragédia iminente. A primeira cena, por exemplo, envolvendo a chama de uma vela de aniversário, traz uma importante mensagem: nesta história, a felicidade está muito próxima da dor.

Em instantes, portanto, o que era leve e brilhante pode virar escuro e desolador. A mesma chama que alegra um aniversário é a mesma que ocasiona uma tragédia.

No livro, entretanto, a história tem início com os primeiros chamados feitos para a polícia, bombeiros e demais autoridades. A partir daí, conhecemos alguns dos nomes envolvidos nos resgates e na própria fatídica festa. Além disso, acompanhamos alguns familiares de perto.

A minissérie, por outro lado, começa horas antes do incidente, mostrando alguns jovens que terão seus destinos selados na boate.

Imagem: Netflix/divulgaçãoSequência que mostra o incidente é forte, mas tem pouco impacto

A mudança gera uma alteração na ordem dramática que acaba prejudicando a minissérie. É possível que, caso começasse do mesmo jeito do livro, a adaptação poderia criar momentos dramáticos ainda mais potentes. Assim, sugerir e mostrar alguns detalhes do incidente para depois investir em flashbacks, poderia aumentar o impacto da tragédia e das histórias particulares.

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Como vimos na série, entretanto, temos alguns breves momentos com as vítimas e seus familiares para depois acompanharmos o incidente. Nesta sequência, por exemplo, temos pouquíssimo tempo com os personagens antes do incidente acontecer. Não temos tempo, então, para conhecer e nos aproximarmos daquelas pessoas.

Já a sequência do incêndio em si, é muito rápida e editada caoticamente. Assim, o impacto do acontecimento é empalidecido, uma vez que não conhecemos a fundo os envolvidos, tampouco passamos muito tempo na reconstituição dos fatos.

Imagem: Netflix/divulgaçãoElenco funciona e série melhora após o incidente

Falta impacto à tragédia, talvez por limitações técnicas ou por medo de chocar. Assim, a direção e a edição falham ao estabelecer a geografia da cena.

Em um momento importante, conhecido por quem acompanhou o caso, vários jovens correm para o banheiro achando que aquela era a saída. Este equívoco só fica evidente porque alguém verbaliza isso. Com base apenas no que nos é mostrado, entretanto, não conseguimos entender o que se desenrola no ambiente.

A dramatização do incêndio é, obviamente, o momentos mais complexo da minissérie. Quando enfim passa por este ponto e foca no que acontece depois da tragédia, Todo Dia a Mesma Noite cresce de forma notável.

O programa melhora, por exemplo, quando acompanha os familiares recebendo as notícias sobre o incidente. Desta forma, a cena em que acompanhamos telefones tocando e luzes acendendo nas casas e prédios é emocionante e bem executada.

De um modo geral, o elenco de Todo Dia a Mesma Noite funciona, com destaque para Paulo Gorgulho e Thelmo Fernandes. A minissérie, entretanto, é assolada pelo mesmo problema que acometeu inúmeras séries novelas brasileiras: o sotaque forçado e equivocado. Errado nas gírias, inflexões e particularidades, o sotaque dos atores chama atenção por sua artificialidade.

Além disso, revela um descuido por parte da produção que parece acreditar que os moradores de Santa Maria falam do mesmo jeito que os de Porto Alegre. Atenção a este detalhe poderia enriquecer a experiência.

Imagem: Netflix/divulgaçãoPrograma tem bons momentos, mas revela os limites da ficção

O sotaque e a artificialidade do texto, porém, não impedem que as cenas funcionem, ou que seus atores não entreguem grandes momentos. Gorgulho, por exemplo, carrega uma das sequências mais tristes do programa, quando procura pelo carro do filho em um estacionamento.

Outro elemento que chama atenção e merece elogios é a fotografia da série. Trabalhando com inteligência plasticidade de jogos de luz e sombras, o programa cria quadros elegantes e funcionais. Alguns deles, por exemplo, evidenciam a dor e o sufocamento dos familiares ao colocá-los no canto, oprimidos pelo espaço ao redor.

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Crescendo sempre que foca no luto e no pós-tragédia, Todo Dia a Mesma Noite é um projeto corajoso que emociona e discute um dos momentos mais tristes da nossa história recente.

Com algumas falhas e decisões equivocadas, a minissérie ainda funciona graças ao poder das histórias reais e do talento de seu elenco. No final, entretanto, é impossível de esquecer: às vezes a ficção não consegue traduzir a realidade.

Nota: 3/5

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Matheus Pereira

Jornalista, curioso e viciado em cultura. Escreve há quase 10 anos no Mix e Six Feet Under é sua série favorita.

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