Por que mudanças de autora no remake de Vale Tudo soam tão equivocadas?

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Vale Tudo

Não é surpreendente que Vale Tudo (1988) seja reputada como uma das mais notáveis novelas da teledramaturgia brasileira. Também não é uma hipérbole afirmar que, infelizmente, a história ainda se relaciona de forma significativa com os dias de hoje; afinal, indivíduos preconceituosos como Odete Roitman, interpretada com maestria por Beatriz Segall (1926-2018), podem ser encontrados em diversos lugares. Assim, Manuela Dias se atreveu a tocar em um tema delicado ao sugerir mudanças ousadas no remake da novela.

A criadora da nova adaptação da trama tem enfrentado várias críticas nas redes sociais a cada comentário que faz sobre a novela das nove.

"Trata-se de uma atualização para os tempos atuais. Isso envolve diversas modificações, desde as tecnológicas — já que a internet ainda não existia — até questões como o alcoolismo, que na época não era visto como uma doença, mas hoje reconhecemos que é. Enfrentamos muitos desafios", declarou ela em entrevista à reportagem da Globo durante o Upfront 2025, que ocorreu na noite de quarta-feira (16).

Manuela também falou sobre as transformações que pretende implementar em uma entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, o que provocou ainda mais críticas esta semana. "Odete continuará sendo uma antagonista, mas sua maldade está bastante conectada ao contexto. Vale Tudo foi a novela que marcou o retorno da democracia, e naquela época, criticar o Brasil ou ter a liberdade de fazê-lo era um ato de resistência. Hoje, no entanto, essa situação mudou. Estamos cansados disso. Odete não oferece soluções, mas sua apresentação será distinta", esclareceu.

A colunista Carla Bittencourt, do Portal Leo Dias, revelou novas mudanças no personagem Helena Roitman, que foi vivida por Renata Sorrah na versão original e agora será interpretada por Paolla Oliveira. A autora da novela pretende afastar a imagem de "bêbada" associada à personagem rica e abordar o tema do alcoolismo de maneira mais séria.

No entanto, parece que Manuela não compreendeu bem (ou desconsiderou) as diversas sutilezas das figuras elaboradas por Gilberto Braga (1945-2021), Aguinaldo Silva e Leonor Bassères (1926-2004).

Heleninha não era apenas dependente do álcool; ela também contava com a atenção do marido, Ivan (Antonio Fagundes), e da própria mãe. A artista revelava uma profunda carência e sensibilidade, utilizando o vício como uma forma de fuga quando não conseguia enfrentar seus sentimentos e traumas.

Eliminar ou até mesmo reduzir as passagens em que a mulher se embriaga significaria uma grande perda para a narrativa, para a audiência e também para Paolla Oliveira, que teria a chance de se destacar em momentos dramáticos e reviver cenas inesquecíveis, como a do "mambo bem caliente" e a da confusão em um bar.

Ademais, a dependência de Heleninha está intimamente conectada a um dos enigmas da obra original: o falecimento de seu irmão. A autora precisará ter muito cuidado para estabelecer essa relação sem aprofundar as crises da protagonista em sua batalha contra o alcoolismo.

Entretanto, o que mais irritou muitos dos admiradores de Vale Tudo foi a declaração de Manuela Dias sobre a famosa antagonista da série. "Eu amo o Brasil. É evidente que tenho minhas críticas ao país, mas não sou Odete, então minhas ponderações são para melhorar. O autor se expressa por meio de seus personagens, e acredito que dizer que o Brasil é um desastre não agrega valor atualmente", afirmou ela em entrevista à Folha.

O entusiasmo da autora, no entanto, não reflete a realidade do país que, há alguns anos, elegeu uma personalidade polêmica como Jair Bolsonaro (PL) para a presidência --e que possivelmente o apoiará novamente se surgir essa oportunidade. Aliás, Odete Roitman simboliza de forma exemplar os eleitores do político de extrema direita, conhecidos como os "protetores da família tradicional brasileira".

No período do governo Bolsonaro, a camada mais conservadora da sociedade não hesitou em evidenciar o racismo, o machismo, a LGBTfobia e diversos outros preconceitos que permanecem vivos no Brasil. Se na década de 1980 Odete se queixava da mistura de raças e da presença de moradores de rua, atualmente, os novos alvos da vilã poderiam ser aqueles que recebem o Bolsa Família ou qualquer outra iniciativa pública apoiada pela esquerda.

Assim, parece incorreto afirmar que o Brasil sofreu tantas transformações nos últimos 36 anos a ponto de uma figura como a matriarca dos Roitman se tornar "saturada". Na verdade, é totalmente plausível que muitas pessoas ainda respaldem os discursos da vilã até os dias atuais.

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