No jogo da equidade, o saque da primeira campeã olímpica brasileira
Nascida no Rio de Janeiro, Jaqueline Silva, conhecida como Jackie, fez história ao se tornar a primeira brasileira a conquistar uma medalha de ouro nas Olimpíadas, juntamente com sua parceira de vôlei de praia, Sandra Pires, nos jogos de Atlanta em 1996. Desde então, a participação feminina no esporte tem crescido significativamente. Nas Olimpíadas em Atlanta, as mulheres representavam apenas um terço dos atletas, mas em Paris elas chegam em igual número aos atletas masculinos pela primeira vez na história, com 55% na delegação brasileira.
Jackie é uma participante ativa na luta pela igualdade: ela foi pioneira na busca por igualdade de condições para os atletas de todos os gêneros, mesmo enfrentando resistência. Atualmente, ela continua a abrir portas em áreas como as federações esportivas e o cargo de treinadora, onde a igualdade ainda não é uma realidade, enquanto também destaca os problemas presentes no mundo do futebol masculino.
A trajetória esportiva de Jackie teve início em partidas divertidas em Copacabana, sob influência de seu pai. Profissionalmente, ela iniciou sua carreira nas quadras e depois se destacou nas praias, onde conquistou o título olímpico e foi campeã do Circuito Mundial de Vôlei de Praia em 1995 e 1997. Atualmente, leciona na escola que fundou em Ipanema, é treinadora na Escola Americana no Rio, lidera o projeto social Atletas Inteligentes e criou o Festival Jackie Vôlei de Praia LGBTQIA+. Durante os Jogos Olímpicos, estará ensinando o esporte aos visitantes da Casa Brasil em Paris. Em entrevista ao Pipeline, Jackie falou sobre suas atividades e planos para o futuro.
Pela primeira vez na história dos Jogos Olímpicos, há um equilíbrio entre o número de atletas do sexo feminino e do sexo masculino. Isso tem causado impacto em quem está acostumado com uma situação tão desigual?
Atualmente, a delegação brasileira conta com mais mulheres do que nunca e são elas que têm as maiores possibilidades de conquistar medalhas. Essa realidade reforça a representatividade feminina e é fundamental, especialmente em um país como o Brasil, onde a violência contra as mulheres é alarmante. Acredito que as mulheres brasileiras merecem ser valorizadas, ter seu esforço reconhecido e o esporte é uma forma de evidenciar isso.
A quantidade de mulheres treinadoras ainda é menor. Qual é o motivo para isso?
Acredito que seja uma questão cultural. Vivi muitos anos nos Estados Unidos e trabalho em uma escola americana, onde as mulheres são bem-vindas em diversos cargos. O Comitê Olímpico Brasileiro tem feito esforços para incluir mais mulheres em posições de liderança, mas ainda há muito preconceito. São ambientes difíceis de entrar, apesar de uma mentalidade mais progressista, o machismo ainda é muito presente. Quando fui treinadora na Confederação Brasileira de Vôlei, fui muito criticada por ser a única mulher na direção, sofrendo com comentários maldosos e falta de reconhecimento pelo meu trabalho. Para uma mulher chegar à seleção como treinadora, normalmente precisa passar por clubes e essa é uma área difícil de conquistar. Além disso, há uma hierarquia rígida e pouca rotação de profissionais, o que, na minha opinião, é necessário para trazer novas perspectivas e mudanças.
Nos anos 80, você foi excluída do time de vôlei de quadra feminino por lutar pela igualdade das condições das atletas em relação aos homens. As premiações e patrocínios estão mais equitativos agora?
Na minha opinião, em alguns esportes está havendo uma maior igualdade. Por exemplo, no vôlei, após aquele incidente, os salários se equipararam aos dos homens e, às vezes, as mulheres até recebem mais. No entanto, o vôlei é um esporte de grande sucesso. Em relação a outras modalidades, não tenho certeza... suspeito que ainda existam disparidades.
Você fez parte da primeira geração do vôlei feminino de quadra, ao lado de Isabel Salgado e Vera Mossa, que enfrentou uma difícil derrota nas Olimpíadas de Los Angeles em 1986, nas semifinais contra os EUA. Como foi se reinventar para se tornar uma campeã na praia?
Estava bastante incomodada com algumas situações que tinham ocorrido, desejando encontrar um lugar onde eu pudesse ser feliz. Após Los Angeles, segui para os Estados Unidos. Já tinha conhecimento sobre o vôlei de praia na Califórnia, mas não tinha em mente lucrar, apenas buscava algo novo. Ao chegar lá, fiquei encantada com o esporte que, tempos depois, iria ganhar renome mundial. Tratava-se de um esporte desenvolvido e gerido pelos próprios atletas. Naquela época, o vôlei de praia alcançou a mesma popularidade que o surfe tem hoje. O Comitê Olímpico Internacional percebeu isso e atualmente, nas Olimpíadas, é o primeiro esporte a ter seus ingressos esgotados.
Como você se sentiu ao competir contra outra dupla do Brasil na final das Olimpíadas de Atlanta?
Nunca imaginaria nem nos meus melhores sonhos que a final seria Brasil contra Brasil. A Mônica e a Adriana tiveram uma excelente performance. Não esperava que elas chegassem à final, contava com Austrália e EUA, que eram nossas grandes adversárias. No primeiro jogo da competição, vencemos facilmente. Mas na final, a situação se complicou. Em certos momentos das Olimpíadas, tudo pode mudar, não há mais favoritos. Se você está lá, é porque tem chances de vencer. No primeiro set, elas jogaram de forma estratégica e ambos os times se conheciam bem. Foi um jogo árduo, mas conseguimos superar. As finais são sempre desafiadoras, já vi muitos atletas favoritos perderem. A Adriana e a Shelda eram as favoritas ao ouro em Sydney, mas acabaram perdendo para as australianas na final.
Quais são as perspectivas para a performance da equipe brasileira em Paris, principalmente no vôlei?
O vôlei brasileiro é altamente respeitado internacionalmente. Na categoria masculina, a equipe está enfrentando uma competição acirrada, com adversários difíceis como Itália e Polônia, o que exigirá um desempenho excepcional. Já no vôlei feminino, percebo um jogo mais relaxado, com as jogadoras demonstrando amor pela camisa e uma inspiração palpável. Nas disputas de vôlei de praia, temos as campeãs do mundo, Duda e Ana Patrícia, como favoritas, enquanto Carol e Bárbara correm por fora. No vôlei masculino, a competição também se mostra desafiadora, com chances limitadas. Em outras modalidades, vejo potencial no surfe, na ginástica com Rebeca, que considero incrível, na boxeadora Bia e na skatista Rayssa, todas elas cotadas como favoritas em suas respectivas categorias.
Atualmente, o vôlei é o segundo esporte mais praticado no Brasil, perdendo apenas para o futebol. Qual é o peso de ser considerado um ícone esportivo?
Eu observo o futebol atualmente e vejo que está em decadência. Na minha opinião, acabou, e é triste porque é o esporte que exerce grande influência sobre as crianças e adolescentes na sociedade brasileira. No entanto, a mensagem transmitida pelo futebol hoje é uma das piores possíveis em termos de ética para os atletas. Temos dois ex-jogadores da seleção brasileira detidos por estupro de mulheres. Não basta ser reconhecido como esportista em sua modalidade, é necessário também ser um bom cidadão, caso contrário, tudo se perde. Um atleta de alto rendimento deve compreender o impacto que causa, que é uma pessoa pública e influencia crianças e jovens que o admiram.
Falando em jovens, você criou o projeto Atletas Inteligentes, que utiliza o vôlei como meio de motivar os estudantes de escolas públicas a continuarem os estudos. Qual tem sido o impacto dessa iniciativa?
O programa Atletas Inteligentes, que tem o reconhecimento da Unesco, atua em escolas públicas e comunidades carentes. Acredito firmemente nos benefícios do esporte para a saúde física e mental, e em seu poder de transformação na vida das pessoas. Para os jovens em situação de vulnerabilidade, o esporte muitas vezes representa a única oportunidade de sonhar com uma vida melhor. Desejo contribuir de alguma maneira para promover essa mudança na vida desses jovens.