A aposentadoria especial enquanto técnica de proteção do ...

20 Mar 2023

Na contramão daquilo que vem sendo banido em muitos países, a solução adotada pelo Brasil foi justamente compensar a exposição do trabalhador a agentes morbígenos com os adicionais de insalubridade e de periculosidade (remuneração extra), o que parece ter colocado a redução máxima, ou seja, a eliminação do agente prejudicial, como segunda opção. Assim, o que somente seria razoável no caso de impossibilidade técnica — vale dizer, a redução da intensidade do agente prejudicial para o território das agressões toleráveis —, é hoje a estratégia de muitas empresas, por uma questão econômica [1].

Neste cenário, a aposentadoria especial surgiu como uma alternativa diante da opção do legislador em compensar o desgaste dos trabalhadores com os adicionais de insalubridade ou periculosidade, colocando, assim, a redução dos riscos no meio ambiente do trabalho em segundo plano; e considerando o fato de alguns serviços, a despeito de sua insalubridade, continuarem a existir ou a tecnologia não evoluir o suficiente para torná-los virtuais.

René Mendes faz uma importante observação, que confere maior destaque ao que se pretende demonstrar neste momento, qual seja, que "[...] o trabalho pode fazer com que as pessoas venham a morrer prematuramente, isto é, 'antes da hora' [...]", por causas distintas daquelas "esperadas" (por agravos que ocorrem excessivamente em algumas categorias). Pode, ainda, "[...] agregar sofrimento à morte, como é o caso de muitos trabalhadores silicóticos que somente alcançam o direito de morrer depois de muito sofrimento produzido pela insuficiência respiratória crônica", e pode prejudicar o direito de dignidade no ato de morrer (morte drásticas, como o esmagamento em um moinho) [2].

Neste nível, a aposentadoria especial aparece intimamente imbricada com a faticidade humana e relacionada com o princípio da dignidade humana, além de outros direitos fundamentais. Ao perquirir a finalidade do benefício, o Supremo Tribunal Federal assim concluiu: "[...] deve-se indagar: qual a finalidade da previsão constitucional do benefício previdenciário da aposentadoria especial? Por óbvio, é a de amparar, tendo em vista o sistema constitucional de direitos fundamentais que devem sempre ser perquiridos — vida, saúde, dignidade da pessoa humana —, o trabalhador que laborou em condições nocivas e perigosas à sua saúde, de forma que a possibilidade do evento danoso pelo contato com os agentes nocivos levam à necessidade de um descanso precoce do ser humano, o que é amparado pela Previdência Social" [3].

A aposentadoria especial carrega consigo, portanto, um limite quase natural, ditado pelo respeito à saúde, à vida e à dignidade da pessoa humana. O cuidado para com o trabalhador significa preservar o que há de essencial na convivência humana. Os princípios da solidariedade, da seletividade e da distributividade permitem escolhas direcionadas para a prevenção e a proteção de determinadas categorias. No que diz respeito à fonte de custeio é suficiente reter que as empresas são obrigadas, por lei, a contribuírem para o financiamento do benefício da aposentadoria especial, a partir dos acréscimos de 6%, 9% ou 12%, os quais incidentes sobre a remuneração dos trabalhadores.

A EC 103, de 12 de novembro de 2019, fez parecer um capricho tudo aquilo que já se discutiu na doutrina, na jurisprudência, enfim, todo um discurso preocupado com os com direitos sociais (trabalhistas e previdenciários) que, por seu turno, influenciam na construção de um espaço de bem-estar, porquanto intimamente imbricadas com a vida prática e relacionadas com o princípio da dignidade humana.

Em síntese, para além do tempo mínimo de 15, 20 ou 25 anos de efetiva exposição a agentes nocivos — o que varia conforme o potencial lesivo dos agentes —, foram introduzidas idades mínimas de 55, 58 e 60 anos, respectivamente. Não há diferença de gênero. Mulheres ou homens se aposentarão com igual idade e tempo de trabalho sob condições especiais. Parece desnecessário, mas a exigência de uma idade mínima contraria a lógica do benefício — sem falar que uma Lei Complementar poderá estabelecer critérios de idade mínima e de tempo de contribuição mais restritivos.

A idade mínima não apenas interfere, mas também potencializa o risco causado pelos agentes nocivos. Após um estudo de sinistralidade, em que analisados 3.526.911 acidentes de trabalho, divididos em dois grupos, abaixo de 55 anos e acima de 55 anos de idade, concluiu-se que os acidentes mais graves ou mortais ocorreram com os trabalhadores acima de 55 anos e que a idade era um fator determinante para o desenlace fatal ou grave nas metalúrgicas, extração de minérios e indústria de madeiras, conforme manifestação do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário.

Por outro lado, a idade mínima obriga o segurado a permanecer no trabalho após o cumprimento do tempo de efetiva exposição a agentes nocivos. No julgamento do Tema 709, o Supremo Tribunal Federal foi, uma vez mais, categórico: "A norma se presta, de forma razoável e proporcional, para homenagear o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como os direitos à saúde, à vida, ao ambiente de trabalho equilibrado e à redução dos riscos inerentes ao trabalho". A conclusão: "É vedada a simultaneidade entre a percepção da aposentadoria especial e o exercício de atividade especial, seja essa última aquela que deu causa à aposentação precoce ou não".

Cumpre perguntar: por que o percipiente de aposentadoria especial não pode permanecer ou retornar ao trabalho insalubre, perigoso ou penoso? A resposta só pode ser: porque isso contraria a finalidade do benefício, qual seja, evitar o dano e, com muito maior razão, atenuá-lo, mediante a redução do tempo de trabalho (com contribuição) sob condições prejudicais à saúde e à integridade física/mental.

A instituição de uma idade mínima significa que o segurado acabará trabalhando por mais de 15, 20 ou 25 anos exposto a agentes nocivos, para, ainda assim, não receber 100% da média dos salários-de-contribuição. E, aqui, os pontos se cruzam, já que, com a EC 103/2019, o critério de cálculo passou a ser: 60% da média + 2% para cada ano além dos 20 anos para homens ou além dos 15 anos para mulheres e mineiros (artigo 26). Por outras palavras, colocou-se a aposentadoria no mesmo nível dos demais benefícios, prejudicando, ainda mais, o segurado que trabalhou sujeito a agentes nocivos durante 15, 20 ou 25 anos. Tomamos como exemplo um mineiro, este segurado somente atingirá um benefício integral (100% da média) após 35 anos de contribuições, o mesmo tempo de contribuição exigido para uma mulher que nunca trabalhou sob condições especiais, ou seja, como se nada justificasse um tratamento diferenciado para quem trabalhou sujeito a agentes nocivos. A situação dos mineiros reclama a redução do tempo de serviço e, consequentemente, da idade, para fins de obtenção do benefício previdenciário, de modo que os riscos a que estão sujeitos não se tornem fatais/irreversíveis ou lhes deixem sem condições (mínimas) de gozar com qualidade sua jubilação [4].

É estranha, inclusive do ponto de vista moral, essa condenação do benefício de aposentadoria especial, por evidenciar e confirmar a impressão de que o ganho com a frustração da convicção de dano tem maior peso do que a eventual perda de uma vida e/ou danos à saúde; ou seja, não é considerado o valor das vidas salvas ou danos evitados (com a redução do tempo de trabalho), mas tão somente o custo do benefício e/ou a praticidade de se conceder uma aposentadoria por invalidez ao trabalhador já incapacitado para o trabalho ou, na sua ausência, a pensão por morte aos seus dependentes. Diminuir o número de vítimas não tem preço.

O verdadeiro custo deve estar numa atuação preventiva por parte da previdência social (seja numa dimensão preventiva ou precaucional) e não na compensação do dano. Assim como no direito dos desastres, os custos atuam como uma espécie de prêmio securitário; os custos econômicos elevados, necessários para se manter a aposentadoria especial a todos trabalhadores, cujas atividades são exercidas com efetiva exposição a agentes noivos à saúde ou à integridade física, são justificados porque combatem e ou evitam riscos (acidentes e doenças ocupacionais), numa relação de custo-eficiência, como acontece no processo chamado de "aversão à catástrofe" — imposto mesmo quando as probabilidades são baixas.[5]

Os dados precisam ser atualizados, mas ainda servem como padrão de observação do que se pretende mostrar aqui. Conforme o Anuário Estatístico da Previdência Social, lançado em janeiro de 2015 e referente a 2013, o ano em que foram registrados 717.911 acidentes de trabalho no Brasil [6]. As ocorrências resultaram em 2.792 mortes, equivalendo que, a cada dia, mais de sete trabalhadores brasileiros perderam a vida executando sua atividade profissional [7]. De 2007 a 2018, em uma versão, na qual, somente foram consideradas as doenças e agravos monitorados com ênfase pela Vigilância em Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde, foram 2.713.732 notificações. O total inclui os seguintes casos: acidente de trabalho grave, câncer relacionado ao trabalho, dermatoses ocupacionais, acidente de trabalho com exposição a material biológico, intoxicação exógena relacionada ao trabalho, LER/Dort, Perda Auditiva Induzida por Ruído (Pair) relacionada ao trabalho, pneumoconioses relacionadas ao trabalho, transtornos mentais relacionados ao trabalho e acidente de trabalho grave envolvendo crianças e adolescentes (0 a 17 anos). No gráfico a seguir, demonstra-se a evolução da série histórica [8]:

Tais números revelam uma distância muito grande entre a realidade e os preceitos normativos.

Ao mapear o perfil do trabalho decente no Brasil, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) trouxe dados dignos de alerta e preocupação, inclusive quanto aos custos que os acidentes de trabalho geram à economia do país. O custo é de 20,4 bilhões, com auxílio-doença e R$ 61,5 bilhões, com aposentadoria por invalidez. Anualmente, segundo a OIT, a economia perde 4% do PIB, com pagamentos de benefícios por incapacidade laboral, além de perdas humanas e de produtividade em razão de trabalho insalubre e inseguro [9].

Com efeito, ao Estado é muito mais valioso propiciar a proteção dos trabalhadores/segurados do que negligenciá-la, pois poderá gerar tantos ou mais custos com doenças e acidentes laborais. A função da aposentadoria especial implica reconhecer um dever de cuidado com o trabalhador, logo, devemos considerar tal benefício como uma forma, uma técnica, de reduzir as chances (a probabilidade) de dano à saúde ou à integridade física do trabalhador, mesmo sabendo que essa ideia não se relaciona bem com um ambiente de trabalho insalubre ou perigoso. O trabalhador é um ser humano que deve, em qualquer relação, ter sua saúde e integridade preservada e protegida. A dor e sofrimento aparecem como elementos que motivaram e justificaram essa mudança de paradigma, com a valorização do conteúdo dos direitos humanos.

Com relação à ADI 6.309, o Supremo Tribunal Federal possui precedentes de observação obrigatória cuja ratio decidendi constitui condição necessária e suficiente para se concluir pela inconstitucionalidade das novas regras da aposentadoria especial (Temas 555, 709 e 942), logo, basta à Corte observar os princípios da coerência e integridade do direito (CPC, artigo 926). A função do Poder Judiciário é perquirir a compatibilidade das novas regras com a Constituição e, numa relação direta com os sentidos construídos e consolidados pelo próprio Supremo Tribunal Federal — sendo possível, portanto, identificar o DNA do direito nas suas decisões —, não deixar o direito (que não cabe na lei) ainda mais incoerente em princípio do que ele já é e/ou mais distante do mundo prático. Sem fazer barulho, ninguém acorda!

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[1]: No Canadá, a Lei acerca da higiene e segurança do trabalho, de 1979, foi taxativa a respeito: "A presença de lei tem por objetivo eliminar na raiz os problemas que ameaçam a saúde, a segurança e a integridade física dos trabalhadores". Na Holanda foi estabelecido que os perigos para a segurança ou a saúde dos trabalhadores deverão, na medida do possível, com caráter prioritário, prevenir-se na origem ou limitar-se o quanto seja possível. Neste mesmo sentido, a Diretiva 89/391 da CEE, a legislação da Suíça e o Código do Trabalho do Paraguai. OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. 3ª ed. rev. e atual., São Paulo: LTr, 2001, p. 110-111.

[2]: MENDES, René. Saúde e segurança no trabalho: acidentes e doenças ocupacionais. In: FERNANDES, Reynaldo (Org.). O trabalho no Brasil no limiar do século XXI. São Paulo: LTr, 1995. p. 201.

[3]: ARE 664.335, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 04/12/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-029 DIVULG 11-02-2015 PUBLIC 12-02-2015.

[4]: Toma-se como exemplo a situação dos mineiros — mais por seu simbolismo do que por sua triste realidade —, uma vez que o seu ambiente de trabalho (minas) é sempre associado a uma "atmosfera pesada", com pouco oxigênio e mistura de poeira, o que afeta seriamente o pulmão desses trabalhadores, provocando uma série de problemas à saúde, como a pneumoconiose (conhecida como pulmão negro), além de distúrbios do coração, diminuição digestiva do organismo etc. Em vista disso, entre 35 e 45 anos o trabalhador em minas poderia ser considerado incapaz para o trabalho. ROCHA, Julio Cesar de Sá da. Direito ambiental do trabalho: mudanças de paradigmas na tutela jurídica à saúde do trabalho. São Paulo: Atlas, 2013. p. 110.

[5]: SUNSTEIN, Cass. "The Catastrophic Harm Precautionary Principle". In: Daniel Farber; Michael Faure (Ed.). Disaster Law. Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2010. p. 149-150.

Bah6: BRASIL. Ministério da Previdência Social. Instituto Nacional do Seguro Social. Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social. Anuário estatístico da previdência social Aeps 2013. Brasília, DF: MPS/DATAPREV, v. 22, p. 575, 2013. Disponível: http://www.previdencia.gov.br/wp-content/uploads/2015/ 03/AEPS-2013-v.-26.02.pdf. Acesso: 18 mar. 2020.

[7]: BRASIL. Ministério da Previdência Social. Instituto Nacional do Seguro Social. Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social. Anuário estatístico da previdência social Aeps 2013. Brasília, DF: MPS/DATAPREV, v. 22, p. 575, 2013. Disponível: http://www.previdencia.gov.br/wp-content/uploads/2015/ 03/AEPS-2013-v.-26.02.pdf. Acesso: 18 mar. 2020.

[8]: OBSERVATÓRIO de Segurança e Saúde no Trabalho. Disponível em: <https://smartlabbr.org/sst>. Acesso em 18 mar. 2020.

[9]: OBSERVATÓRIO de Segurança e Saúde no Trabalho. Disponível em: <https://smartlabbr.org/sst>. Acesso em 18 mar. 2020.

Diego Henrique Schuster é advogado, professor, doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

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