O uso dos instrumentos de democracia defensiva no Brasil hoje

Brasil hoje

Quando se trata de avaliar a qualidade democrática de um país, o pior sinal que pode surgir é a "popularização" do uso de mecanismos de defesa democrática. Esta conjectura sugere que uma das duas circunstâncias seguintes pode estar ocorrendo: a democracia pode estar sofrendo uma erosão considerável, o que requer uma atuação intensa dos funcionários públicos comprometidos com sua proteção; ou mecanismos de defesa democrática estão sendo usado de maneiras impróprias e manipulados por fins políticos, com o objetivo antidemocrático de fortalecer certos braços do Estado, em detrimento de outros.

Quando o líder do Senado devolve uma medida provisória que ameaça a Democracia, ou quando o Supremo Tribunal Federal utiliza o controle de constitucionalidade para anular um perdão de Natal concedido pelo Presidente, esses procedimentos são bastante raros e só são legítimos se não houver alternativas menos drásticas para proteger o sistema democrático. Por esta razão, tais tipos de ativismo político ou jurídico não podem se tornar a norma na interação entre os poderes estabelecidos.

Com certeza, ainda não existe uma solução definitiva para lidar com a democracia defensiva no Brasil. Contudo, existem algumas suposições que, apesar de não serem exaustivas e nem restringir novas hipóteses, podem ser incorporadas à construção de um modelo teórico de defesa da democracia.

A premissa inicial da democracia defensiva é que esta só deve ser aplicada de forma natural, ou seja, sem esgotar a legislação disponível, em períodos de exceção. Durante tempos normais, institucionalmente falando, não há razão para utilizá-la. A avaliação sobre se a situação atual é excepcional ou não deve ser feita caso a caso e deve contar com a desconfiança não só do agente comprometido com a preservação da democracia, mas também com a aprovação da comunidade política e jurídica.

É importante destacar que o estado de exceção não pode ser presumido, porém, também não se pode esperar que ocorra um grande desgaste nas instituições democráticas para que seja configurado, pois nesse momento já seria tarde demais. É necessário identificar e investigar o estado de exceção antecipadamente, para que medidas de defesa da democracia possam ser praticadas de forma eficiente e dentro do prazo. Identificar o estado de exceção quando este já tiver se consolidado, ou quando a erosão democrática estiver avançada, não terá nenhum efeito benéfico.

Existiriam alguns sinais que podem indicar a instauração de um regime antidemocrático de exceção, tais como a aplicação abusiva do direito constitucional, a adoção de medidas autoritárias dentro da lei, a presença de militares em atividades não previstas na Constituição, a interferência em instituições políticas cruciais, o assédio às estruturas institucionais e a disseminação de informações falsas. Se todas essas práticas estiverem presentes, é um forte indício de que há uma situação de exceção em curso, o que justifica o uso de instrumentos de defesa da democracia.

A segunda ideia está associada à importância de incluir nas cláusulas da Constituição os mecanismos de defesa da democracia, para não deixar margem para dúvidas acerca dos princípios democráticos que devem ser acolhidos pela sociedade, bem como sobre a autoridade dos agentes públicos na sua aplicação.

Se a devolução de medidas provisórias que contenham um caráter antidemocrático pode ser uma estratégia adequada para proteger a democracia, é importante ter uma regulamentação minuciosa desse instituto, para evitar abusos e um possível aumento do autoritarismo.

É comum que, em uma fase de mudança, onde a autoridade política manifesta atitudes antidemocráticas de repente, as medidas de proteção democrática ainda não tenham sido estabelecidas em lei e sejam implementadas de acordo com as necessidades imediatas. Contudo, esta incerteza não pode ser mantida indefinidamente, pois não ajuda a consolidar a defesa da democracia no Brasil.

A terceira condição é que ocorra uma melhoria, inclusive jurídica, na compreensão da amplitude da proteção da liberdade de expressão no Brasil. Aqui, vários líderes políticos têm tentado adotar a doutrina dos EUA sobre liberdade de expressão, como se seus princípios fossem universalmente aplicáveis. Contudo, isso não procede.

Nos Estados Unidos, a tradição estabelece que a liberdade de expressão seja quase incondicional. Lá, é permitido defender publicamente a manifestação racista da Ku Klux Klan, por exemplo. No entanto, no Brasil, isso é impossível. A liberdade de expressão tem limites na defesa de outros valores constitucionais, como a cidadania, a honra, a privacidade e a dignidade humana. Essas ideias estão presentes na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Considerando essa perspectiva, uma das questões mais cruciais a serem tratadas no que diz respeito a limitações da liberdade de expressão no Brasil é a imprescindibilidade de punições para indivíduos que compartilham notícias falsas. Em um país que se encontra sob um Estado Democrático de Direito, no qual vários valores humanos são reconhecidos como direitos fundamentais, estabelecidos legalmente pela Constituição, não é admissível que a divulgação de informações inverídicas seja considerada um direito subjetivo.

A Constituição não dá nenhum suporte para um suposto direito de difundir falsidades como se fossem verdades, especialmente quando essas mentiras têm o potencial de afetar as eleições e, consequentemente, a qualidade da democracia no país. Uma democracia saudável não pode aceitar a disseminação desenfreada de notícias falsas, especialmente por motivos político-eleitorais, pois isso poderia levar a consequências irreversíveis.

A última premissa é a urgência de cultivar no Brasil uma cultura que defenda a democracia e que não seja praticada apenas em períodos excepcionais, mas sim constantemente. Em oposição ao que foi mencionado sobre a utilização espontânea dos mecanismos de defesa democrática, que só devem ser aplicados em situações excepcionais, a construção de uma cultura de defesa democrática deve seguir um processo contínuo de melhorias.

Realmente, é crucial trabalhar constantemente para consolidar o conceito de democracia na sociedade, ainda que esta não esteja sob ameaça imediata. É importante lembrar que os valores democráticos são fundamentais dentro da Constituição e, por isso, precisam ser praticados e assimilados pela população em seu cotidiano.

A promoção de uma justiça de transição efetiva e que não se limite a oferecer perdão ocasional aos adversários da democracia é uma contribuição importante para incentivar uma cultura que defenda a democracia. Pois a história de um país deve contar com as marcas das batalhas perdidas, assim como das vitórias alcançadas.

Da mesma forma, é imprescindível assegurar que a imprensa mantenha a sua liberdade, a fim de proporcionar aos cidadãos informações imparciais, sem nenhum tipo de viés político. Uma imprensa desimpedida facilita a difusão de ideias contrárias e permite aos cidadãos a possibilidade de selecionar aquelas que mais atendem aos seus interesses ideológicos.

Por fim, é imperativo reiterar a secularidade do Estado brasileiro, dissolvendo equívocos básicos sobre a influência que a igreja deve exercer na vida civil, para que os indivíduos deixem de lado seus preconceitos e consigam subordinar questões de natureza íntima à sua religião, delegando ao Estado a supervisão de assuntos ligados ao patrimônio e à saúde pública.

Com o intuito de evitar equívocos, promover uma cultura de democracia defensiva não implica em sugerir uma cultura de suspeita em relação à política ou à religião, ao invés disso, objetiva proteger a democracia.

[1] Verifique-se, dentre outras referências, o registro de parecer do ministro Dias Toffoli, emitido em 30/8/2011 no contexto da Ação Originária nº 1390/PB.

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