Bebê Rena: por que série baseada em história real de stalking e abuso sexual é a 'mais angustiante do ano'

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Richard Gadd

Atenção: este texto apresenta revelações do enredo de "Bebê Rena" e menções a casos de abuso sexual.

Uma nova minissérie da Netflix criada pelo comediante escocês Richard Gadd, conta a história real do seu sofrimento ao ser perseguido por uma pessoa obsessiva chamada stalker (termo em inglês usado para definir alguém que persegue outra pessoa obsessivamente, seja na internet ou no mundo real). Essa produção é considerada uma forma intensa de terapia, e também está sendo apontada como o programa de TV mais perturbador de 2024.

Quando o promo de Bebê Rena tomou forma no começo do mês de abril, pareceu algo que seria um mashup pouco original de drama e comédia, uma narrativa feliz de um humorista com um "stalked" chato que está a enviar-lhe e-mails com mensagens como "(Eu) acabei de comer um ovo".

Aqui é onde está a primeira jogada astuta do comediante Richard Gadd da Escócia, que é tanto escritor, produtor quanto protagonista de Baby Reindeer.

Ao ter o público subconscientemente predisposto a esperar algo, a vivência de finalmente assistir à série transforma-se em uma experiência impressionante.

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Ontem à noite, deparei-me com esta série e comecei a assisti-la desprovido de qualquer informação prévia a respeito, como expressou uma pessoa na seção de comentários do trailer no YouTube.

"Este programa é intenso, agitador e perturbador, e possivelmente figura dentre os melhores produzidos pela Netflix em um longo período."

Uma nova observação foi feita por alguém: "Eu também vivi a mesma situação… Inicialmente, imaginei que se tratava de uma comédia britânica de humor ácido, sem muita importância… Entretanto, percebi que foi uma jornada através de várias emoções".

Depois de ser disponibilizada em 11 de abril, a série logo se destacou como a mais assistida da Netflix nos Estados Unidos, Reino Unido e atualmente, no Brasil. Até agora, já foram assistidas mais de 10,4 milhões de horas de conteúdo.

Devido à falta de ampla divulgação prévia ao seu lançamento, é possível que um grande número de telespectadores seja apresentado à história pela primeira vez ao assistir à minissérie de sete episódios, sem ter conhecimento de que ela é, de fato, baseada em eventos reais da vida de Gadd e tem um caráter autobiográfico.

Anteriormente, ele adaptou a história para o teatro como um monólogo com o mesmo nome em 2019.

Ignore o podcast e siga com a leitura.

Um programa de áudio seleciona reportagens para um podcast.

No ano de dois mil e quinze, uma senhora adentrou um estabelecimento londrino onde Gadd exercia sua profissão. Após sugerir uma xícara de chá, o indivíduo iniciou um diálogo amistoso com a dama.

Durante os próximos três anos, ela continuou com seu assédio, aparecendo sem parar no local de trabalho dele e em todas as performances de comédia em que ele participava.

Posteriormente, a dama adquiriu o endereço eletrônico do humorista e remeteu mais de 41 mil correspondências ao longo desse lapso de tempo. Quando obteve a cifra do telefone móvel dele, deixou 350 horas de recados de voz.

Ela costumava enviar-lhe presentes que não eram bem-vindos - chamando-o de "bebê rena" em relação a um brinquedo de infância que evocava lembranças dele - e também fez denúncias falsas contra a família do comediante para as autoridades policiais.

Quando Gadd procurou ajuda da polícia, recebeu uma resposta negativa, conforme relatou ao jornal britânico The Guardian: "Fui criticado por incomodar a polícia com a minha história de assédio".

Martha, o nome dado por Gadd à personagem perseguidora interpretada por Jessica Gunning, é descrita como uma força demoníaca que sufoca a vida digital e real de Gadd. Ela aparece para atrapalhá-lo sempre que ele está no palco, atacando violentamente sua parceira Teri (Nava Mau) e o agredindo sexualmente enquanto ele caminhava para casa numa noite.

Contudo, Martha jamais é apresentada como uma caricatura da "mulher vingativa"; pelo contrário, é retratada com grande complexidade, sendo evidente que enfrenta questões de saúde mental.

Conforme relatado pelo periódico The Independent, Gadd afirmou que o assédio e a perseguição se configuram como patologias mentais. Seria inapropriado retratar a pessoa como um vilão, já que esta não goza de saúde mental e o sistema falhou em prover o cuidado necessário.

Na série, o personagem fictício de Gadd é Donny, que demonstra empatia por Martha. No entanto, no início, ele também demonstra curiosidade e até se sente lisonjeado com o interesse dela. Isso explica algumas das estranhas interações iniciais que ocorrem entre eles.

O humorista convida a sua companheira para um estabelecimento de bebidas quentes, a escolta até o lar dela e de tempos em tempos atende às suas fantasias de um futuro romance.

Gadd admite que, na verdade, cometeu equívocos.

Ao ser entrevistado pelo The Guardian, ele admitiu ter cometido muitos equívocos e agravado a situação.

Eu não possuía a perfeição em meu ser [naquele período], portanto, é incoerente afirmar tal coisa.

No entanto, um dos momentos mais impactantes e violentos da programação televisiva deste ano ocorre no quarto episódio, quando a trama retrocede e expõe a principal causa do comportamento conflituoso de Donny em relação a Martha: ele é tão frágil quanto ela, pois foi iludido e violentado por um homem que julgava ser seu amigo no passado.

A curva acentuada que surge no meio da série conduz o público diretamente à origem da instabilidade emocional de Donny e esclarece a questão que Martha inteligentemente lhe fazia desde o começo: "Alguém lhe fez mal, não é mesmo?".

O episódio narra a história de Donny, um comediante lutando para se destacar em um festival de comédia em Edimburgo, na Escócia. Uma história paralela e autodepreciativa é desenvolvida e o clima fica cada vez mais tenso quando Darrien (Tom Goodman-Hill), um escritor renomado da indústria televisiva, oferece ajuda a Donny para que ele alcance o sucesso no mundo da comédia.

Ao invés de prestar assistência, Darrien encoraja o consumo de variadas substâncias ilícitas. Enquanto Donny permanece inconsciente em seu domicílio, Darrien comete o primeiro ato de agressão sexual contra ele.

Em outra cena perturbadora, Darrien comete um ato de estupro contra Donny. O grau do controle que Darrien tem sobre Donny através da coerção é tão intenso que Donny acredita que não tem a opção de se afastar.

Donny disse em seu relato: "Seria ótimo dizer que eu parti com raiva e nunca mais olhei para trás."

"Entretanto permaneci ali durante vários dias. No início da semana, adquiri uma inflamação ocular e me deitei no solo enquanto ele higienizava meus olhos com solução salina. Já na terça-feira, providenciei alimento para o felino dele enquanto ele atendia chamadas telefônicas."

Donny sente um profundo constrangimento e nojo que permeia todas as esferas de sua existência. Ao longo do episódio, acompanhamos sua jornada radical rumo à imprudência sexual, acionada pelo transtorno de estresse pós-traumático. Ele se coloca diversas vezes em situações perigosas, numa tentativa de aplacar sua confusão e baixa autoestima.

Novamente, esse relato é baseado em uma experiência vivida por Gadd: durante sua peça de teatro "Macaco Vê, Macaco Faz" em 2016, ele descreveu como foi vítima de violência sexual cometida por um homem que conheceu em uma festa.

Série Genial E Inovadora

As ramificações da violência sexual não costumam ser apresentadas de forma tão impactante e intensa na TV - em parte, o programa "Bebê Rena" se assemelha a um filme de terror.

Gadd demonstra extrema valentia ao ser completamente sincero sobre sua experiência arrasadora, e sua habilidade em tornar compreensível para o público televisivo as complexidades da situação também é notável.

Em alguma medida, a criação de Bebê Rena lembra a série icônica do ano passado que definiu esse tipo de gênero: I May Destroy You.

Na obra, Michaela Coel, a autora também transformou em ficção o seu estupro por um desconhecido na vida real — e a terrível influência psicológica que esse acontecimento teve sobre ela.

Tanto Coel como Gadd concordam que suas séries têm o poder extraordinário de permitir que eles se envolvam em um enredo baseado em seu próprio abuso, e enxergá-lo de uma forma libertadora. Coel descreve isso como uma experiência "catártica", enquanto Gadd se refere a isso como "a melhor terapia que já experimentei; tem sido um verdadeiro salva-vidas".

"Compartilhar vivências traumáticas em um espaço de suporte pode facilitar o 'processamento cognitivo' do incidente, possibilitando que as pessoas encontrem significado no que ocorreu e o integrem em sua memória pessoal", afirma Emma Kenny, psicóloga e comunicadora de rádio.

Este procedimento auxilia na reestruturação do trauma de modo a torná-lo menos desconfortável e desestabilizador para o próprio senso e perspectiva de mundo do indivíduo. Além disso, pode funcionar como um modo de "exteriorização", em que as vítimas são acolhidas com empatia, validação e suporte de outras pessoas, reforçando a autoestima e diminuindo os sentimentos de solidão e humilhação.

"Isso significa que, por meio de assistência social, é possível atenuar as consequências prejudiciais do trauma e fomentar a capacidade de adaptação", enfatiza.

Nos dois programas de TV, entretanto, a trajetória dos protagonistas após passarem pelo trauma é finalizada com incerteza.

Durante o último episódio da série I May Destroy You, o alter ego de Coel - Arabella - adentra um mundo fictício e fantástico, onde imagina diferentes reações ao se deparar com seu estuprador. Contudo, na realidade, ela nunca teve a chance de confrontá-lo.

Contudo, Donny aparece na casa de Darrien no desfecho de "Bebê Rena", talvez com a intenção de confrontá-lo acerca do estupro. Mesmo assim, assim como Arabella é incapaz de encontrar o desfecho ideal que imagina para sua narrativa, Donny também é impedido de responsabilizar seu agressor e juntar todas as peças para concluir sua própria história.

Ao invés disso, Darrien dissimula que há algo de errado, manobrando Donny e prontamente reestabelecendo sua autoridade sobre ele mais uma vez.

Essa "batalha" é uma realidade triste em uma sociedade em que grande parte dos autores de violência consegue evitar punição.

Ela também demonstra a complexidade e imprevisibilidade dos efeitos do abuso, onde as vítimas podem se sentir presas ao perseguir seu agressor devido ao impacto emocional sofrido.

Tal como revelou à revista GQ, Gadd afirmou que "o abuso deixa uma marca indelével. Este tipo de abuso, que é recorrente e vem acompanhado de promessas, é particularmente nefasto. Há um certo padrão de comportamento em que muitos sobreviventes de abuso se sentem dependentes dos seus agressores... São os efeitos negativos e complexos que surgem da ligação que, por vezes, se constrói com o agressor."

Há outros momentos extremamente emocionantes na série após a exposição do abuso.

Presenciamos Donny colapsando no palco, um acontecimento que se converte em um vídeo viral que paradoxalmente lhe proporciona toda a notoriedade e êxito que ele tanto almeja.

Ele revela aos seus pais os detalhes da agressão e em resposta, o pai insinua que foi vítima de abuso por parte de indivíduos ligados à Igreja Católica.

Recebemos a informação de que Martha foi sentenciada a nove meses de detenção, porém Gadd não divulgou os detalhes sobre o que realmente ocorreu com sua perseguidora na vida real.

Em entrevista ao The Times, ele afirmou: "A situação foi solucionada. Eu estava indeciso sobre o assunto, pois não queria encaminhar alguém com sérios transtornos mentais para o cárcere".

No desfecho, Donny concretiza o ciclo ao receber uma bebida grátis do garçom, tal como ele tinha ofertado a Martha no primeiro encontro com a mesma.

Alguns telespectadores passaram a conjecturar que Donny pudesse se transformar no próprio perseguidor, perseguindo de forma obsessiva o homem que trabalha por trás do bar. Entretanto, isso parece improvável, visto que a narrativa está firmemente embasada na história de Gadd.

É bastante plausível que Gadd tenha oferecido uma interpretação mais ampla sobre o ciclo do trauma e as condições em que indivíduos fragilizados podem ser arrastados, caso não recebam o suporte adequado.

Indubitavelmente, Gadd fez uso do seu sofrimento como meio para alcançar resultados notáveis, concebendo quatro horas de televisão emocionantes, nas quais expôs e rebuscou suas doenças vividas de maneira comovente e esclarecedora aos demais.

Segundo a psicóloga Emma Kenny, o sucesso de Baby Reindeer, assim como foi com I May Destroy You, pode gerar impactos benéficos para aqueles que enfrentam situações de abuso e agressão na vida real.

De acordo com Kenny, empregar o discurso público a respeito do trauma tem o potencial de colaborar para a "restauração coletiva", por meio da ampliação da consciência, da contestação das regras e convicções sociais com relação ao trauma, e da defesa de modificações no sistema social e nos suportes para os sobreviventes.

Muitas vezes, assistir a essa série pode ser extremamente difícil e, por essa razão, é considerada a mais perturbadora de 2024. Contudo, em sua essência, ela oferece a oportunidade única de acompanhar Gadd e sua busca por autoconhecimento, por meio da terapia mais extrema que se pode imaginar.

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