"A única referência de preços na Argentina é que hoje é mais barato do que amanhã", diz ex-ministro - NeoFeed

Argentina

Os cidadãos argentinos estão se preparando para o primeiro turno das eleições presidenciais, que ocorrerá em 22 de outubro, em um ambiente repleto de dúvidas.

Segundo Dante Sica, ex-ministro da Produção e Trabalho do governo de Mauricio Macri (2015-2019) e fundador de uma das consultorias mais renomadas do país, a economia argentina encontra-se em um estado de incerteza total, não havendo um suporte fiscal ou monetário sólido. Desta maneira, a criação de expectativas se torna inviável.

Segundo suas palavras, a desvalorização repentina do peso e o aumento incontrolável da inflação refletem a atmosfera de desesperança que permeia os argentinos. Muitas famílias sentem-se compelidas a adquirir roupas e geladeiras no segundo dia do mês para então revendê-las posteriormente no Mercado Livre.

Dessa maneira, conseguem manter o seu patamar de ganhos, de certa forma. Enquanto isso, as companhias estão em uma posição de defesa. As empresas de médio porte não desejam efetuar mais vendas, visto que desconhecem o valor de reposição dos seus itens", declara Sica. "A única certeza é que o preço atual é mais acessível do que o de amanhã."

Na perspectiva de Sica, nem o ministro da Economia, Sergio Massa, nem o candidato de oposição, Javier Milei, que se autointitula anarcocapitalista, e ambos com aproximadamente 28% das intenções de voto, são confiáveis.

O candidato Massa, que tem vínculos com o peronismo, conseguiu uma façanha incrível ao chegar à disputa eleitoral com chances de vitória, mesmo aplicando uma política econômica que provocou uma inflação anual de 124%. Por outro lado, o candidato Milei agitou a campanha com suas propostas pouco convencionais, tais como a dolarização da economia, o fechamento do Banco Central da Argentina e a legalização do comércio de órgãos humanos, conseguindo atingir algo que parecia impossível: decretar o fim definitivo da economia argentina.

No programa de rádio veiculado na segunda-feira, dia 9 de outubro, foi desaconselhado que cidadãos argentinos optassem por utilizar o peso em seus investimentos. A justificativa foi dada pelo comentarista que afirmou que a moeda é emitida por políticos locais e, dessa forma, não pode apresentar nenhum valor considerável. Na opinião do mesmo, o peso argentino é tão inútil que não serve sequer como excremento humano.

Nos dias que se seguiram, o valor da moeda em relação ao dólar caiu abruptamente no mercado negro, diminuindo 7% na segunda-feira e 10% no dia seguinte. Pela primeira vez, a moeda americana ultrapassou a marca de 1.000 pesos no mercado negro, atingindo um valor de 1.035 pesos.

Para se compreender a situação de crise na Argentina, basta notar que durante as eleições primárias realizadas em 14 de agosto, o valor do dólar americano atingiu a marca de 660 pesos. Isso é significativamente mais alto do que seu valor em abril de 2020, quando o dólar era cotado a 80 pesos, no início da pandemia.

Para mensurar a extensão da crise, Sica afirma que a conhecida ideia do "efeito dominó" - de que quando Argentina ou Brasil sofrem uma crise acabam afetando o país vizinho - não é mais aplicável no presente momento. Infelizmente, a dinâmica econômica do ciclo do Brasil, Paraguai e Uruguai não está mais conectada com a da Argentina.

Confira a seguir alguns fragmentos da entrevista:

Após os recentes ataques à credibilidade do candidato Milei, a economia argentina enfrenta mais uma onda de incerteza. O cenário econômico do país é indefinido, já que as políticas fiscais e monetárias não conseguem ancorar a economia. É impossível criar expectativas em um contexto como esse, principalmente porque o governo atual não inspira confiança. O presidente (Alberto Fernandez) está desaparecido, o ministro da Economia (Sergio Massa, candidato presidencial) viola acordos importantes, assinados de manhã como ministro e desconsiderados à tarde como candidato. Esse é um contexto em que a economia assiste a preços aumentando mais de 100% ao ano. Alimentando a incerteza antes das eleições, o governo eleva gastos sem declarar a fonte de financiamento, aumenta a emissão de dinheiro e amplia o déficit futuro.

"A atual administração governamental não inspira confiança alguma. Enfrentamos uma situação em que nosso presidente (Alberto Fernandez) se mantém afastado dos holofotes."

Caso o opositor Javier Milei vença as eleições promovendo a dolarização da economia e a eliminação do Banco Central, a crise pode ser agravada. É importante ressaltar que ele fez tais propostas em um momento em que não existem dólares nem reservas suficientes para essa mudança. Além disso, Milei sugeriu recentemente a eliminação do peso, o que gerou uma grande desconfiança na população e resultou em uma desvalorização acentuada da moeda. De acordo com o mercado paralelo, o peso desvalorizou em quase 30%, enquanto os salários já sofreram uma queda de 15% no último mês. É preocupante que essas declarações tenham sido feitas não como uma consulta financeira, que é como Milei é conhecido, mas como um candidato à presidência.

Qual é o caminho a seguir depois das eleições para recuperar a economia do país? O governo precisa mudar sua estratégia, mas o tempo está curto até a posse do novo presidente em 10 de dezembro. Além disso, a situação é complicada por ter um candidato à presidência que também é ministro da Economia. O governo não tem mais ferramentas para combater a inflação e só pode recorrer à repressão. Medidas superficiais foram tomadas, mas não tiveram efeito. Enquanto isso, os preços continuam a subir e fica um clima de incerteza para as pessoas. Algumas famílias estão comprando roupa e até geladeiras para revendê-las no mercado online para manter seu nível de renda. As empresas, especialmente as médias, estão em uma posição defensiva, relutando em fazer vendas sem ter certeza de como repor seus estoques.

A proposta de dolarização da economia de Milei não é bem-vista pelos economistas, mas os argentinos sempre tiveram inclinação pelo dólar, possuindo mais de US$ 250 bilhões guardados. Porém, qual é a probabilidade de a dolarização dar certo agora? A dolarização é um instrumento monetário que só seria eficaz se fosse implementado em conjunto com reformas, sendo a última a ser realizada. Milei precisa ter um programa de consolidação fiscal, seguido de uma reforma monetária e, posteriormente, cambial. Não é inteligente começar com a dolarização, pois seria como colocar a carroça na frente dos bois.

A Argentina teve uma experiência anterior com a dolarização, por meio da convertibilidade do austral, que foi um fracasso e terminou em 2000. Ainda assim, por que há tantas pessoas defendendo essa ideia atualmente? O problema com a convertibilidade era que, com a taxa de câmbio fixa, não havia como absorver os impactos externos da crise da Rússia, Tailândia etc. Então, por que voltar a considerar a dolarização agora? A adesão atual se deve ao longo período de inflação alta, em que o peso perde valor todos os dias, como um sorvete que derrete na Copacabana em pleno verão. Isso causa angústia, pois não há referência de preço e não se sabe se algo é caro ou barato, só se sabe que amanhã será mais caro. Antes de pensar em um mercado de câmbio único, todas as reformas fiscais e monetárias devem ser realizadas e o Banco Central deve ter forte independência, seguindo o exemplo do Peru, Chile e Brasil. Assim, será possível recuperar e fortalecer o valor do peso, além de permitir a circulação mais livre do dólar.

Qual é a razão para retornar à dolarização neste momento? A adesão recente decorre de um longo período de alta inflação, no qual o peso perde valor rapidamente, como se você estivesse em pleno sol do meio-dia em Copacabana.

É um projeto de longo prazo, sem dúvida. A Argentina passou por um processo de redução de 13 zeros da moeda nas últimas quatro décadas e sofre com uma inflação média de 70% ao ano. Sendo assim, o dólar tem se consolidado como uma opção sólida de reserva de valor para o país. É preciso reconhecer esse fato e instituir um quadro jurídico por meio do Código Civil para permitir sua livre circulação e fortalecer o valor do peso gradualmente ao longo de um processo de 10 anos, quando a economia estiver mais estável.

Qual é a razão para a popularidade de Milei e suas propostas excêntricas, como a abolição do Banco Central e a legalização da venda de órgãos humanos, além da adoção do dólar como moeda oficial? Esse fenômeno está ocorrendo em todo o mundo, expressando o cansaço e a exaustão fruto da falta de respostas para o processo de globalização e perda de bem-estar. Em alguns casos, como a invasão do Hamas em Israel, ocorre do ponto de vista religioso. Na Europa, há movimentos nacionalistas. São fenômenos globais que, de alguma forma, canalizam a raiva contra os sistemas democráticos. As pessoas projetam suas frustrações nos sistemas democráticos e nos setores políticos, que são percebidos como os principais responsáveis pela falta de bem-estar.

Milei é uma figura única. Ele fundou um partido há dois anos, mas não tem representantes em outras regiões do país. Atualmente, ele possui apenas um pequeno grupo de dois ou três deputados ao seu lado.

Será que há uma semelhança entre a trajetória política de Milei e a de Jair Bolsonaro no Brasil? É possível que apresentem um estilo parecido e compartilhem algumas ideias, mas Bolsonaro tinha uma carreira política sólida, tendo servido como deputado por quase duas décadas. Além disso, teve o respaldo dos militares e dos evangélicos, além de contar com uma base forte de parlamentares no Congresso. Milei é diferente, é apenas um indivíduo. Criou seu próprio partido há somente dois anos, sem representação nas províncias e com somente dois ou três deputados atualmente. Para ter maioria no Congresso argentino, Milei necessitaria de 129 deputados, enquanto seu partido poderia lhe garantir apenas 35. Desse modo, ele é um fenômeno emergente da televisão, sendo consultor e analista de economia, bem como um debatedor político em programas quase cômicos. Ele foi eleito como deputado apenas dois anos atrás.

Já imaginou como ele se comportaria na cadeira de presidente? Não temos certeza se ele continuaria com seu estilo polêmico dos programas de TV ou adotaria uma postura mais sofisticada. Ele teria que negociar com os deputados para aprovar as leis ou simplesmente rotular todos os políticos com a mesma imagem desprezível? É uma grande incógnita. Se ele tentasse fechar o Banco Central, os deputados provavelmente rejeitariam a ideia. E então, como ele reagiria? Iria tentar fechar o Congresso, como fez o antigo presidente do Peru, Pedro Castillo? Não sabemos, já que nunca teve experiência com governança ou empresa; sua carreira foi apenas como consultor econômico. Essa é a maior incerteza, não só em relação ao seu plano econômico, mas também como ele o implementaria em uma situação de crise como a que vivemos agora.

Por que Sergio Massa, que já foi ministro e orquestrou uma política econômica marcada pela inflação, está concorrendo às eleições presidenciais e ainda tem chances de ganhar? Caso ele vença, todo o conhecimento teórico sobre política e economia terá que ser revisto. É difícil acreditar que um ex-ministro da Economia, em um país com inflação anual de 124%, onde a renda e o consumo já se deterioraram, possa vencer uma eleição. O fato é que o peronismo é extremamente resistente. Atualmente, as chances de Massa ganhar são altas em comparação às outras facções do peronismo, que estão encaminhando-se para uma das piores eleições da história. Ele já conquistou cerca de 27% da intenção de votos. Mas, surpreendentemente, Massa está conseguindo driblar a corrupção e a recessão que o país enfrenta. Com isso, os seus 27% de eleitores não parecem se importar com os escândalos envolvendo o Partido Peronista, nem com a condenação da atual vice-presidente. A inflação fora de controle também não parece ser um fator decisivo para esses eleitores. Entretanto, eu acredito que a situação poderá mudar. A estrutura do peronismo, em âmbito nacional, será reconfigurada se a candidata de centro-direita, Patricia Ulrich, avançar para o segundo turno.

"Em caso de eleição de Sergio Massa à presidência, será necessário revisar todos os manuais acerca da teoria política e econômica."

Segundo Patricia Ulrich, o concorrente a ser derrotado no primeiro turno é Massa, e não Milei. Isso se deve, principalmente, ao fato de que Massa representa o kirchnerismo, ideologia que precisa ser eliminada da Argentina. Caso avance para o segundo turno contra Milei, a candidata terá a oportunidade de demonstrar seu desejo de mudança com um projeto econômico sólido e uma equipe técnica altamente qualificada. Ademais, há 11 províncias que se uniram em prol da mudança, algo inédito desde o início da democracia no país, quando as províncias estavam sempre sob controle peronista.

O apoio de Ulrich, o ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019), foi eleito com a promessa de acabar com o ciclo do peronismo e revitalizar a economia, mas falhou até mesmo em sua tentativa de reeleição. Onde ele errou? A dificuldade de Macri era que, embora fosse liberal, sua posição dentro do poder limitava suas ações. Em 2015, as pessoas queriam eliminar a corrupção, não necessariamente reformular o sistema econômico. Além disso, ele precisava de um número maior de deputados e senadores do que os que possuía para aprovar as leis e avançar com as suas reformas. Portanto, ele teve que negociar com os governadores das províncias peronistas, o que acabou enfraquecendo suas medidas de mudança em 2016 e 2017.

Por que os governos argentinos encontram tanta dificuldade em implementar uma política econômica equilibrada em termos fiscais? Nos últimos 20 anos, o kirchnerismo dominou a política na Argentina e não deu prioridade à disciplina fiscal. Eles acreditavam que o déficit fiscal financiado pela impressão de dinheiro não causava inflação, mas essa posição está mudando. O governo Macri começou a contribuir para o fim do ciclo populista do kirchnerismo, e o governo de Fernández (que não pertence à ala kirchnerista do peronismo) continuou nessa linha. Atualmente, 70% da população e a maioria das forças políticas apóiam a disciplina fiscal para recuperar a independência monetária e um sistema cambial transparente e único.

Existe a possibilidade, apesar da gravidade da crise, de a Argentina encontrar uma solução para superar a hiperinflação - semelhante ao Plano Real adotado pelo Brasil? Quando o Plano Real foi implementado em 1994, o Brasil estava mergulhado na hiperinflação. Embora estejamos enfrentando uma crise forte, acredito que não chegaremos à hiperinflação. No entanto, é inegável que a Argentina perdeu sua relevância na região. Anteriormente, havia o famoso "efeito Orloff", em que os problemas de um país afetavam o outro. Isso não existe mais, pois a lógica econômica dos ciclos do Brasil, Paraguai e Uruguai está completamente desconectada da Argentina, infelizmente.

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